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repertório dos paradigmas de som

Perspectiva e proximidade

Características sonoras elementares que permitem ao ouvinte estimar a distância entre ele e o emissor de som.

Categoria: elementar

O som tende a dissipar-se ao longo do seu percurso: a intensidade dos sons decai proporcionalmente à distância entre a fonte emissora e o receptor1. Este fenómeno poderia ser apresentado de várias outras maneiras:

Poderíamos encará-lo como uma variante da filtragem: o meio transmissor  seja ele o ar, a água, uma parede de betão  actua como um filtro, subtraindo energia ao som original. Graças a este facto, é-nos muito fácil saber, mesmo sem ver, se um objecto emissor de som está a aproximar-se ou a afastar-se.

exemplo (em construção)

Por outro lado, a fase ajuda-nos muitas vezes a localizar o som no espaço, contribuindo assim para aprimorar a noção de perspectiva no âmbito do som.

exemplo (em construção)

Acústica e física

A progressão do som no espaço corresponde ao facto de a vibração inicial das partículas atómicas da fonte sonora ser transmitida às partículas adjacentes do meio transmissor, e assim sucessivamente, até as ondas sonoras alcançarem o ouvinte. Ora, tal como sucede com o calor (ou qualquer outra forma de energia), a transmissão de energia de uma partícula para outra acarreta uma dissipação de parte da energia inicial, ou a sua transformação noutra forma de energia (geralmente calor, no caso do som). Quando, por exemplo, produzimos som de grande intensidade e durante muito tempo dentro de uma sala, é fácil verificar que as superfícies sólidas absorventes aí presentes tendem a aquecer (transformação da energia sonora em energia calorífica). Por isso, nos estúdios de som, que são revestidos por materiais fortemente isolantes (isto é, absorventes das ondas sonoras), é impossível trabalhar muito tempo seguido sem ligar o ar condicionado, porque a temperatura nunca pára de subir ao longo do dia.

Se a perda de intensidade do som fosse o único vector a ter em conta, seria muito fácil simularmos o afastamento de um som – bastava baixarmos o seu volume. Mas os sons ambientes, salvo raríssimas excepções, são compostos por diversas frequências. Ora sucede que as frequências graves têm mais energia do que as agudas, que se dissipam mais rapidamente; de forma que, à medida que aumentamos a distância entre o emissor e o receptor, os agudos tendem a desaparecer mais rapidamente que as restantes componentes. Daí que a simulação artificial do afastamento se torne bastante complexa: tem de incluir uma filtragem progressiva dos sons mais agudos, e depois dos médios, e por fim dos graves. 2 Além disso, a reverberação também entra aqui em jogo – acontece por vezes, conforme o espaço físico envolvente, que um som já só é muito debilmente audível, mas a sua reverberação continua a soar com relativa força.

Arquitectura e urbanismo

Em grande parte, a proximidade é um caso particular de filtragem. Contudo, do ponto de vista da produção de sentido, a proximidade apresenta características peculiares, e por isso não a devemos tratar como um simples caso particular da filtragem.

Tomemos o exemplo da ponte 25 de Abril, em Lisboa. O som dos carros a atravessarem a ponte é tão potente, que se torna audível em praticamente toda a cidade, a vários quilómetros de distância. Quando percorremos a cidade a pé, o ouvido atento saberá se está a aproximar-se da zona da ponte ou a afastar-se dela, graças ao efeito de proximidade.

Algo semelhante acontece com outras paisagens urbanas, industriais e naturais (o mar, o vento na ramagem das florestas, os ruídos industriais, etc.): ainda que inconscientemente, a nossa percepção está constantemente sujeita ao efeito de afastamento/proximidade, com a consequente formulação de sentido.

Expressões mediáticas

No que diz respeito às relações de espaço e tempo, o cinema tem adoptado duas estratégias opostas: ou opta por uma estética naturalista, aplicando as leis da perspectiva com grande rigor; ou opta por uma estática naïve, quando não kitch, não fazendo corresponder a perspectiva sonora à perspectiva visual (este é o caso dominante no cinema comercial holywoodesco, nos últimos anos). Veja-se o caso do campo e contracampo: numa cena em que dois personagens dialogam frente a frente, a câmara (que no fundo é um terceiro personagem e quase sempre representa o olhar do espectador) forma o terceiro vértice de um triângulo, como se estivesse sentada à mesa com os personagens: a câmara olha para um dos interlocutores (campo) e tem de «rodar a cabeça» para olhar o outro personagem (contracampo), ou então recua para ver os dois ao mesmo tempo; em princípio, é proibido pelas leis da perspectiva a câmara (ou seja, o espectador) saltar para o outro lado da mesa, o que inverteria as relações espaciais – o personagem sentado à esquerda passaria a estar à direita, e vice-versa; o ponto de fuga passaria a ser o ponto de vista, o que seria extremamente confuso e impediria uma leitura fluente da narrativa por parte do espectador. No entanto, encontramos casos de violação desta regra, por vezes rompendo as regras da perspectiva de forma brilhante, outras vezes causando um sentimento de estranheza intencional.

Por regra, as relações entre a imagem e o som deveriam obedecer às leis da perspectiva: quando um personagem se afasta da câmara, a sua voz, os seus passos e todos os outros sons que emite deveriam diminuir, na proporção em que diminui a sua imagem dentro do quadro; e, num diálogo entre vários personagens estáticos, esperar-se-ia que o volume de voz de cada um deles fosse proporcional à sua distância à câmara. No entanto, nas últimas décadas, a edição e montagem de diálogos no cinema mainstream rompeu com as regras da perspectiva e da proximidade: a maioria dos filmes regista todas as vozes ao mesmo nível e sem reverberação (isto é, sem espaço físico), como se estivessem a falar ao nosso ouvido, alheando-se completamente das regras da perspectiva. Quando vemos isto pela primeira vez, não podemos deixar de sentir um choque, porque até aí o teatro tinha postulado regras de perspectiva naturalista, mas de repente aquela cena põe em causa os nossos instintos naturais de espacialidade e volumetria, rompe as regras de lateralidade (que são um elemento genético comum a todos os seres multicelulares, desde há milhares de milhões de anos). Com a repetição, filme após filme, esta subversão das regras naturais transforma-se em convenção e o espectador acaba por aceitá-la com relativa indiferença – da mesma maneira, creio eu, que nos habituamos ao facto de a pessoa que cozinha todos os dias para nós não ter qualquer sentido das proporções e pôr sal nos doces e açúcar nos salgados.

Tal como na pintura, nada impede que um filme adopte um conjunto de regras estéticas (ou de construção, se quisermos evitar termos potencialmente polémicos), sejam elas quais forem, por mais disparatadas que pareçam à primeira vista – na condição de ser coerente e as cumprir de princípio a fim. No que diz respeito às relações entre espaço, tempo, imagem e som, um filme pode obedecer às leis da perspectiva; ou, pelo contrário, pode adoptar uma estética naïve, completamente alheia à perspectiva; ou uma «estética kitch», abolindo completamente as relações de espaço-tempo do lado do som; e assim por diante – no campo das artes, todas as opções estéticas são igualmente válidas, desde que aplicadas de forma coerente.

O que é estranho, porém, no cinema mainstream dos últimos anos, é que estabelece um conjunto de regras estéticas naturalistas e de repente rompe a coerência estética, introduzindo elementos contraditórios, do tipo naïf – nomeadamente quando uniformiza o nível de som das falas de todos os personagens e coloca todos eles a falar ao nosso ouvido (distanciamento = zero), qualquer que seja o ponto de vista da câmara e a distância a que se encontram. Esta disrupção resulta do facto de, na maioria dos casos, as falas serem refeitas (dobradas) em estúdio – o personagem parece estar a falar ao nosso ouvido porque, de facto, está a falar a cinco centímetros do microfone numa sala potencialmente anecóica e o editor de som não teve paciência para simular a perspectiva de som e suas réplicas (a reverberação) em coerência com o ponto de vista da câmara.

Por outro lado, temos de reconhecer que em muitas cenas a aplicação estrita das regras da perspectiva tornaria as falas e outros sons imperceptíveis, por estarem demasiado afastados do ponto de vista da câmara. Nestes casos, a disrupção da perspectiva sonora reverte a favor da inteligibilidade.

Psicologia e fisiologia da percepção

A percepção é muito sensível ao efeito de proximidade, em ambos os sentidos: não só nos apercebemos da distância a que se encontra a fonte sonora e do seu movimento em relação a nós (capacidade que pode salvar a vida dos cegos, especialmente numa rua movimentada), mas também reagimos em função da distanciação – sabemos exactamente até onde temos de elevar a voz para a tornarmos perceptível aos nossos interlocutores, quando nos afastamos.

 


Notas:
[1] A energia de um som pode ser medida de diversas formas (joules, watts, etc.), mas a unidade geralmente usada em sonoplastia e electroacústica é o decibel SPL [sound pressure level], que mede a pressão acústica. De cada vez que a distância entre o emissor e o receptor duplica, a intensidade do som cai 6 dB SPL. Assim, se um som, ouvido a 2 metros de distância, chegava até nós com a intensidade de 80 dB SPL, quando a distância duplica ele soar-nos-á com uma potência de 80 – 6 = 74 dB.
[2] Existem actualmente utensílios digitais que permitem simular facilmente e com razoável exactidão a perspectiva e o afastamento das fontes sonoras. Isto é possível devido ao facto de a perspectiva ser um efeito elementar, isto é, de todos os vectores em jogo são quantificáveis.
Rui Viana Pereira ► última revisão: 18-11-2024
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