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repertório dos paradigmas de som

Metábole, montagem, mistura

Conjugação de diversos sons, por meios electrocústicos ou digitais, com ganho qualitativo em relação aos elementos originais. 1 2 3

Categoria: composição

A metábole

O termo metábole foi repescado por Augoyard na arte da retórica. A palavra faz parte da mesma família etimológica a que pertencem metáfora, metabolismo, metamorfose, etc., e o prefixo meta- denota deslocação6 – e portanto sugere mudança, transformação. Tal como o metabolismo fisiológico designa um conjunto de transformações que ocorrem no encontro de vários elementos químicos dentro do organismo, assim a metábole sonora designa as transformações qualitativas que podem ocorrer no encontro de vários sons distintos. Essa conjugação pode ser feita de duas maneiras: por sequenciação/justaposição e por sobreposição. Na justaposição um pedaço de sequência sonora segue-se a outra sequência sonora, da mesma forma que num jogo de dominó as peças são dispostas sequencialmente. Na sobreposição, que geralmente é chamada «mistura» ou «orquestração» ou «harmonização», consoante os casos, vários sons ou sequências sonoras são ouvidas simultaneamente.

É importante notar que a metábole não implica necessariamente a transformação física dos elementos constituintes – tal como o metabolismo não implica necessariamente a transformação ou cisão das moléculas.

Dado um conjunto de sons, a metábole pressupõe a possibilidade de realizar infinitas permutações entre esses elementos. Cada combinação provoca um efeito particular, diferente de todas as outras – diferentes arranjos geram diferentes relações entre os elementos constitutivos do conjunto, donde resultam diferentes totalidades e diferentes significados.

O ambiente sonoro urbano é um exemplo típico de metábole: embora os elementos sonoros individuais duma paisagem urbana sejam quase sempre os mesmos, a sua conjugação encontra-se em perpétua transformação, criando a todo o instante novos arranjos que dificilmente se repetem.

Na minha abordagem à metábole interessa-me destacar o que pode ser usado de forma prática na transformação da realidade sonora, isto é, interessa-me encontrar guias de acção para a sonoplastia. Deste ponto de vista, podemos dizer que a metábole consiste na aplicação conjugada das técnicas de selecção, corte e colagem.

O termo metábole bastaria para designar este paradigma, mas a dificuldade de impor um «palavrão» pouco comum e o uso já consagrado dos termos mistura, montagem e sequenciação aconselham a manter essas designações, que apontam claramente para o lado instrumental das operações de sonoplastia; ao contrário do termo metábole, não exprimem de forma directa a produção de ganhos qualitativos sobre os sons individuais componentes.

A mistura

Não existem sons puros na vida quotidiana. Vivemos mergulhados num caldo composto por dezenas ou centenas de sons – a cidade, o campo, os locais de trabalho e o ambiente doméstico são misturadores naturais. Dentro dessa massa sonora complexa, o ouvinte pode contudo eleger alguns sons e ignorar os restantes (paradigma da focagem), criando-se assim a ilusão de que cada som existe isoladamente, de forma pura.

Aquando da elaboração de uma banda sonora é frequente utilizar-se cópias de sons individualizados (vozes, carros, utensílios, vento, mar, etc.) e misturá-los de forma a construir um espaço imaginário. Na verdade, trata-se de uma imitação da realidade, isto é, uma imitação da mistura que ocorre naturalmente nos ambientes domésticos, urbanos, industriais, campestres, mas com uma diferença importante, que distingue o trabalho criativo dos processos naturais: a mistura criativa obedece a critérios de selecção, não usa indiscriminadamente todos os sons disponíveis num cenário natural – é um caso de aplicação do princípio geral segundo o qual criar significa antes de tudo seleccionar.

A montagem

O termo montagem é um dos mais conhecidos do público em geral e é anterior à invenção da sonoplastia – está ligado ao início da arte contemporânea, nomeadamente nas artes plásticas, onde designa a operação de corte, colagem e justaposição de elementos visuais.4 É também o paradigma germinal do cinema: em 1899, George Méliès, ao produzir L'Affair Dreyfus (O Caso Dreyfus), viu-se confrontado com um problema: nessa época as bobinas de película proporcionavam apenas cerca de 50 segundos de imagem em movimento, o que condicionava a maneira de contar uma história. Ora a história que ele pretendia contar estendia-se muito além de um minuto. A solução que ele encontrou deu origem ao cinema tal como o entendemos hoje: colou várias fitas de celulóide, para contar uma história completa.5

Com o aparecimento da gravação de som em fita magnética passou a ser possível cortar (seleccionar pedaços de som) e colar gravações, para construir uma sequência capaz de criar uma narrativa sonora.

No caso de ser possível dispor de mais de dois leitores de fita magnética, havia ainda outra possibilidade: pôr duas ou mais fitas a rodar ao mesmo tempo e gravar o resultado dessa mistura – nascia assim a composição por meios electroacústicos. Antes da invenção destes aparelhos, a mistura artificial de sons só era possível ao vivo, por meio de actuações teatrais e orquestrais. Contudo, a montagem por meios electromagnéticos tinha uma limitação: para sobrepor vários sons, repeti-los, etc., era preciso fazer cópias de partes das gravações originais. Ora, de cada vez que se faz uma cópia analógica, dá-se uma importante perda de qualidade do som registado e um aumento do ruído de fundo. Hoje, graças aos meios de produção e cópia digital, que não sofrem degradação de qualidade, as possibilidades de composição, mistura e montagem são infinitas.

A construção de sequências sonoras por meios digitais permite elevar o discurso sonoro à altura da narrativa literária (atenção, não estou a dizer que uma banda sonora tenha de ser necessariamente narrativa), porque o processo de montagem/mistura permite integrar todos os outros paradigmas: elipse, filtragem, citação, bordão, dinâmica, máscara, etc.

Psicologia e fisiologia da percepção

O ouvido tem a capacidade de perceber sons múltiplos como uma entidade una, mas ao mesmo tempo o seu poder discriminatório permite-lhe ouvir mais especificamente ou seleccionar uma parte dos sons. Para imaginarmos este processo, digamos que certos elementos se destacam, formando «figuras» , enquanto outros permanecem em fundo. Embora esta capacidade seja limitada pelas relações de intensidade, a atenção selectiva pode desfazer em parte essa limitação: assim, o som mais intenso pode não ser de facto o que faz de figura.

Quando uma pessoa se encontra em situação de percepção real, selecciona as suas formas; é a esses sons que irá prestar atenção. Estamos então perante um processo de sinédoque (tomar a parte pelo todo) […]

— Jean-François Augoyard & Henry Torgue, Répertoir des effets sonores, 1995 (tradução minha)

Esta passagem descreve bem o que se passa quando nos encontramos perante uma mistura de sons – o que, de resto, é a situação mais normal no dia-a-dia –, mas as comparações entre a percepção visual e a auditiva têm de ser usadas com alguma cautela. De facto, a dualidade forma/fundo não se adapta bem aos fenómenos sonoros, que vivem sobretudo na dimensão temporal. As leis da percepção visual (ver nomeadamente as hipóteses da Gestalttheorie) devem ser transpostas como simples metáfora no que diz respeito à percepção auditiva, que funciona de forma bastante diferente.

Estética musical

A possibilidade de construir composições sonoras que dificultam o trabalho discriminatório da percepção auditiva foi abordada por Yannis Xenakis.

Expressões mediáticas

Quase todo o cinema consiste numa gigantesca operação metabólica, tanto na imagem, como no som. Este tipo de cinema (pode haver outros, evidentemente, nada nas artes é espartilhado, a não ser por vontade do autor) define-se precisamente por consistir num acto de montagem. Daí que o mesmo material de filmagens (o material bruto), quando posto nas mãos de diferentes montadores (ou editores, se preferirem a disparatada designação anglófona), dê origem a filmes muito diferentes entre si – fazer um filme só em parte consiste em filmar (e às vezes nem isso, quando se usam imagens de arquivo); só se pode começar a falar em filme quando os brutos foram montados para construírem uma sequência (seja ela narrativa ou de outro tipo).

Em épocas relativamente recentes, a evolução dos meios técnicos de mistura e montagem permitiu atingir um novo patamar, reinventando sons compostos difíceis ou impossíveis de separar por parte do ouvinte: por exemplo, sons construídos pela mistura de electrodomésticos e rugidos de leão, em certos filmes de ficção científica, através de uma operação de amálgama a que os anglófonos chamam morphing.


Notas:
[1] O repertório de efeitos de Augoyard não contempla a montagem, mas refere a mistura.
[2] A montagem pressupõe uma operação fundamental, dupla e una: o corte e a colagem. Não abri uma ficha específica para esta questão (chamar-se-ia corta-e-cola), porque não se trata de um fenómeno sonoro nem de um efeito, mas sim de um meio instrumental.
[3] Augoyard apresenta estes três conceitos em separado, atribuindo a cada um deles categorias diferentes – por exemplo, a mistura pertenceria à categoria da composição e a metábole aos efeitos mnemoperceptivos. Tendo a crer que devem ser apresentados em conjunto, como um paradigma complexo, à semelhança do que fiz com a dinâmica, a anamnese e outros paradigmas.
[4] Nas artes visuais, a entrada em cena do vidro, dos espelhos modernos e de outros elementos arquitectónicos reflectores e difractores criou um tipo de montagem visual, por assim dizer expontânea, que muito influenciaria não só as artes visuais, mas também todas as outras. Uma sala recheada de espelhos burilados, portas de vidro e candelabros com pingentes é, por si só, um convite à invenção da pintura cubista.
[5] Assinale-se à margem que O Caso Dreyfus (1899), de Méliès, que descreve um conjunto de acontecimentos políticos, não só marca o início do cinema moderno (é o primeiro filme montado por corte e colagem, que eu saiba), mas também o primeiro caso de censura no cinema …
[6] O termo clássico metáfora ainda hoje é usado na Grécia para designar os transportes públicos, pois os objectos elementares (neste caso pessoas) são deslocados de um contexto para outro, sem sofrerem eles próprios qualquer alteração – o que, só por si, é uma boa definição de metáfora.
Rui Viana Pereira, setembro-2021 ► última revisão: 18-11-2024
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