Foco ou sinédoque
Valorização de um elemento sonoro em detrimento dos outros.1
Dada uma pluralidade de sons simultâneos, como é que a percepção e a consciência fazem uma selecção do principal e do acessório?, como é que o ouvinte elabora um entendimento global dessa pluralidade estímulos? Estas perguntas não podem ser respondidas no âmbito acústico, mas sim na ordem perceptiva e cultural.
Perante a multidão de sons que nos cerca, cada indivíduo é obrigado a fazer uma selecção drástica: eleger 1 % ou menos desses sons, organizá-los cognitivamente em função dos seus interesses e da informação cultural ao seu dispor. A base deste processo começa na fisiologia do ouvido: ao contrário da visão, o ouvido não é capaz de focar fisicamente os sons; esta tarefa compete à atenção e interpretação dos estímulos sonoros; numa palavra, à percepção.
A selecção perceptiva é uma tarefa de sobrevivência, de vida ou de morte. Daí que certas espécies animais tenham desenvolvido formas particulares de viajar em grupo: a organização de um bando de estorninhos ou de pombos em voo, por exemplo, não obedece a regras claras de geometria, mas sim a regras de probabilidade; cada ave pode aproximar-se e afastar-se das que a rodeiam dentro de certos limites máximos e mínimos; essa distância não é fixa, varia constantemente, de forma aleatória. O mesmo se passa com certos cardumes de peixes que formam uma massa pulsante; não como um coração, cujos movimentos obedecem a regras fixas e portanto apresentam uma geometria previsível, mas sim aleatoriamente, mudando constantemente de forma e volume. Resultado: quando um predador pica sobre este grupo de animais, a sua atenção não consegue fixar-se em nenhum deles em particular. O falcão atravessa o bando de estorninhos como uma seta, como se não tivesse visto nenhuma das vítimas, e no entanto elas mal se desviam, porque qualquer acto intencional de fuga produziria uma lógica reconhecível, logo, provocaria um acto de concentração e selecção por parte do falcão.
O nosso ouvido encontra-se perante o mundo sonoro como o falcão perante o bando de pardais. A diferença é que nós desenvolvemos a capacidade, ao nível da percepção, de eleger uma «vítima sonora», abstraindo-nos de todas as demais.
O português coloquial não estabelece relações directas entre a audição e a compreensão. Mas se tentarmos raciocinar em francês, por exemplo, encontramos uma teia de cumplicidades entre o ouvido e a elaboração perceptiva e intelectual: «entender» significa, para um francês, ouvir; para um português, significa formular um juízo. Ora a raiz etimológica de entender diz-nos que se trata de um movimento para dentro (tal como atender denota um movimento para fora), acabando a evolução da palavra por levá-la a designar um juízo interior (pessoal) sobre algo exterior (impessoal) que nos chegou através da percepção.
É disso precisamente que o efeito de focagem trata: focar a atenção num som que participa de uma massa sonora é formular um juízo/entendimento sobre o mundo; isso implica fazer uma selecção, o que leva a tomar a parte pelo todo.
Sociologia e cultura quotidiana
Se entender/ouvir implica à partida a formulação de juízos de valor, então é natural que cada indivíduo foque os sons ambientes consoante o valor que lhes atribui por razões pessoais, profissionais, culturais. Um pedreiro, por exemplo, é capaz de atribuir significados e fazer uma leitura microscópica dos sons provenientes de um estaleiro. Muitas vezes ele será capaz de dizer, sem ver a cena (como se pode comprovar em testes com gravações) se a obra está a ir bem ou mal. Se, na mesma gravação, se ouvir uma chilreada de pardais, um outro ouvinte abster-se-á de fazer observações sobre os ruídos da obra e em compensação talvez note que a chilreada revela que a gravação terá sido feita ao pôr do sol.
Cada pessoa extrai de determinados ambientes os símbolos sonoros que, a seu ver, tipificam a situação. Por exemplo, na caracterização sonora do ambiente das igrejas, cada qual apontará símbolos sonoros diferentes: um apontará a reverberação típica das grandes igrejas construídas em pedra, outro o sininho do sacristão, outro os carrilhões, outro a ladainha das orações... Comparadas todas as respostas, verificamos que de facto não existem razões objectivas para eleger um desses sons como ex libris. Tudo depende da experiência e dos valores pessoais.
No entanto, há valores de focagem que são generalizados numa cultura. Aliás, a aculturação massificada tende a uniformizar a atribuição icónica, em prejuízo da personalidade individual. O cinema e a rádio tiram especial partido desse facto, servindo-se dos emblemas acústicos para introduzir instantaneamente uma situação ou uma cena: pneus a chiar representam carros em fuga; uma confusão de sapatos no pavimento a caminharem em todas as direcções representa uma multidão sem acção solidária; um só apito grave, longínquo, suscita a imagem de uma zona portuária. É fascinante esmiuçar o extensíssimo catálogo de sons emblemáticos que todos nós possuímos. O emblema não distingue a situação sonora em si mesma (do ponto de vista físico, quero eu dizer), mas sim o valor e a especificidade culturais atribuídos a essa situação.
Tomemos um som emblemático: o apito. Pode ser do árbitro, do polícia, do tratador de cães, do nadador-salvador, etc. Pode vir acompanhado de um milhão de outros ruídos; mas será sempre, mais ou menos subtilmente, o emblema da autoridade, da coacção e do alerta.
Um caso particular de focagem: o efeito de cocktail ou cocktail-party
O efeito de cocktail é um caso particular de focagem estudado por E. Cherry2 e diz respeito aos ambientes onde existe um grande bruá de conversas: apesar da confusão onde nenhuma palavra se distingue no meio da massa sonora, conseguimos focar a atenção nas palavras do nosso interlocutor. Nenhum microfone é capaz de fazer esta habilidade, que se sustenta nos mecanismos da percepção e não nas características físicas dos acontecimentos sonoros.
(…) podemos considerar que, do ponto de vista psicofísico, a escuta selectiva assenta na nossa capacidade de discriminar no espaço sons com diferentes proveniências, ou seja, na nossa capacidade de localizar no meio do ruído.
— G. Canévet, «Audition binaurale et localisation auditive», in Psycoacoustique et perception auditive, Paris, Inserm, 1989, p. 107 (citado a partir de Augoyard, «Répertoire...», p. 36.
Augoyard dedica uma ficha especificamente a este efeito; não vejo motivos para o fazer neste repertório de paradigmas.
Psicologia e fisiologia da percepção
«Perceber é seleccionar» [A. Moles, Teoria da Informação e Percepção Estética, 1973] e cada indivíduo tem um limite máximo de apreensão de informações simultâneas. Ora esse limite é muito inferior ao débito de informações sonoras ambientes. Logo, é preciso exercer um acto de selecção: se nada pudermos seleccionar, nada ouvimos!
A intencionalidade é a condição prévia que irá determinar todo o processo de focagem auditiva. O exercício da intenção (mais uma palavra etimologicamente relacionada com tender e entender), por sua vez, depende do contexto, das condições específicas de cada situação e do juízo que sobre esse contexto fazemos.
É espantoso como certos pais conseguem dormir a sono solto enquanto no apartamento ao lado os operários demolem uma parede à picareta, mas ao primeiro vagido do bebé acordam logo. Até a dormir o mecanismo de focagem funciona!
Estética musical
Na audição musical começa por pôr-se o problema da valoração prévia: isto é música, aquilo não é música. Sendo esta a posição inicial culturalmente adquirida, a escuta arma-se quase sempre de uma grande rigidez logo à partida.
Sucede que a música é, por definição, um processo cumulativo de efeitos de focagem, no sentido de selecção prévia. Não se usam todos os instrumentos da orquestra à molhada, não se lança mão de todas as melodias do mundo, não se fazem cocktails de ritmos. Fazer música é entender o universo sonoro (natural e cultural) que nos cerca; entender é, como já se viu, seleccionar. Fazer música é perpetuar uma selecção milhões de vezes depurada antes de nós.
Depois põe-se o problema do treino cultural: ouvir música não é algo tão inteiramente espontâneo como poderia parecer. Um ouvinte com grau zero de treino, perante uma obra contrapuntística do Renascimento, pode não conseguir destrinçar a formidável massa sonora ali presente (o que não quer dizer que não a aprecie ou não lhe proporcione prazer). É a aprendizagem que permite seguir as distintas linhas melódicas, eleger uma delas como referência das restantes, e assim por diante – aprender (no sentido académico, entenda-se) significa adquirir valores e significados culturalmente atribuídos às coisas; uma vez na posse desses valores (que constituem em si mesmos uma pré-selecção), será então possível focar auditivamente a obra contrapuntística, ou seja, focar a atenção.
Com o advento do Romantismo e a produção de música para consumo das massas, começaram a adoptar-se técnicas de focagem que facilitam a percepção ao comum dos mortais. A utilização do leitmotiv é uma delas.
Por fim, na idade contemporânea, a invenção das paisagens sonoras veio pôr em destaque o trabalho de focagem na escuta da vida quotidiana.
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