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repertório dos paradigmas de som

Filtragem

Reforço ou atenuação das frequências de um som.

Categorias: elementar
Variantes: equalização, noise reduction, voice coder, coloração

Cada som é geralmente composto por várias frequências que podem ser filtradas, isto é, subtraídas (ou acrescentadas) à totalidade do som. Quando ouvimos vozes vindas do apartamento ou do quarto ao lado, elas chegam até nós não apenas com intensidade atenuada, mas também subtraídas de uma parte das suas frequências, subtraídas pelas barreiras materiais interpostas entre a fonte e o receptor. Que parte do som é filtrada? – isso depende dos materiais que compõem o obstáculo, da sua espessura, etc. 1

Som original
Som filtrado através de parede (simulação por filtragem electroacústica)
André Popp - som original
Espectrograma do som original (com 2 canais). O eixo horizontal mede o tempo da sequência sonora. O eixo vertical mede as frequências em cada instante. A luminosidade é proporcional à intensidade da frequência em causa.
André Popp - som filtrado
Espectrograma do som filtrado. É patente que parte da informação sonora desapareceu.

A filtragem pode resultar de

Se aplicarmos uma filtragem de tipo telefónico a uma voz, impõem-se ao ouvinte duas ideias: comunicação e lonjura – percebemos que alguém fisicamente ausente pretende transmitir uma mensagem. No entanto, se fôssemos extraterrestres e nunca tivéssemos ouvido uma voz humana, certamente aceitaríamos aquele som como se fosse o original, sem filtragem, por não possuirmos uma referência mnemoperceptiva ao original; não imaginaríamos relações de espaço e tempo, de comunicação e socialização. Ou seja, apesar de a filtragem ser um paradigma elementar, e portanto objectivamente mensurável, o seu efeito ao nível da percepção e da construção de sentido depende em parte da cultura e da experiência pessoais.

Outro exemplo comum é o da locução em voz off (isto é, ouvimos uma voz mas não vemos a figura que lhe corresponde). A voz do locutor é com frequência artificialmente filtrada (reforçada em certas frequências e atenuada noutras), de forma a soar mais profunda, ou infantil, ou íntima, ou longínqua, ou ameaçadora, etc. Ora o ouvinte não conhece o locutor em questão (aliás, nos raros casos em que vem a conhecê-lo apanha geralmente um choque, porque a figura imaginada a partir da voz ouvida não corresponde à figura real). O interessante neste exemplo é que o efeito produzido pela filtragem tem um valor referencial, sem dúvida, mas a referência é em grande parte construída por nós próprios, receptores: possuímos modelos culturais que fazem corresponder determinadas vozes ou timbres a certas figuras e situações (estatura, medo, agressividade, clausura, etc.). É uma questão puramente cultural e não acústica.

Enquanto fenómeno acústico elementar, a filtragem é mensurável. Enquanto efeito sonoro, a percepção dos sons filtrados é tingida por traços circunstanciais e culturais.

Nos ambientes campestres e urbanos, o som chega-nos sempre filtrado pelos meios de propagação – pressão atmosférica, temperatura e humidade do ar, obstáculos interpostos entre o emissor e o receptor. O ouvido humano tem a capacidade de distinguir e interpretar as mais subtis filtragens, de forma que o sonoplasta recorre a efeitos desse tipo para criar ambientes ou paisagens sonoras.

Aliás, o ouvido humano é ele próprio uma máquina encadeada de filtragem que começa no ouvido externo e acaba na memória. Tudo o que ouvimos é sujeito a filtragem física e subjectiva, pondo em jogo a memória e a cultura. Daí que a mais «pura» captação de som possa ser bastante desinteressante. Primeiro, porque o «ouvido» dos microfones, embora também ele efectue uma filtragem dos sons captados, tem características físicas diferentes do nosso ouvido. Segundo, porque a filtragem do microfone não tem a capacidade de introduzir filtragens subjectivas, de modo que a gravação pode revelar-se material bruto sem interesse nem inteligibilidade; a inteligência dos sons não reside no carácter específico dos sons «puros», mas sim nos significados pessoais e culturais que lhes atribuímos. Qualquer pessoa que já tenha gravado uma roda de amigos a conversar animadamente sabe que a sua gravação pura, não trabalhada, falha por completo a essência do momento e acaba por ser enfadonha, porque desprovida de sentido. É preciso aplicar-lhe artificialmente uma quantidade de filtros para simular o que o ouvido e o cérebro fizeram na ocasião vivida, para que a gravação comece a adquirir interesse, e em muitos casos nem a filtragem física dos sons é suficiente para obter um resultado inteligível – só uma montagem artificial permitirá criar sentido.

A filtragem é um efeito presente no dia-a-dia: dificilmente um som chegará até nós sem sofrer algum tipo de filtragem.

Coloração

A coloração designa aqui o trabalho de filtragem exercido pelo ambiente físico onde o som se propaga. Contribuem para a coloração de um som o espaço físico onde ele se reflecte (paredes, mobiliário, etc.) e o meio ambiente transmissor (ar, água, cimento, etc.). Note-se que neste caso a filtragem pode ser negativa (subtracção de frequências que são absorvidas pelas superfícies reflectoras) ou positiva (adição de frequências induzidas pelos objectos reflectores, por exemplo caixas ocas).

Em cada espaço, o seu volume, a sua configuração, os materiais que o compõem agem sobre o som original, reflectindo-o de formas com colorações específicas a esse espaço, que se torna assim distinto de qualquer outro.

Como é evidente, o termo «coloração» é pedido de empréstimo ao domínio da luz e seus efeitos, por similitude – também a luz é «tingida» em função das características dos objectos onde é reflectida.

A equalização e o voice coder

A filtragem natural é um processo subtractivo – isto é, subtrai componentes do som original. Os meios de produção electroacústicos e digitais vieram alterar este paradigma: é agora possível adicionar componentes a um som original.

Uma das formas aditivas de trabalhar o som chama-se equalização e consiste em subtrair, atenuar ou aumentar algumas frequências. Outra forma, ainda mais sofisticada, de alterar o som original consiste em acrescentar-lhe harmónicos (ver secção adiante).

Creio que Augoyard não considera a equalização como um efeito (a não ser que lhe tenha atribuído outro nome que me tenha escapado); no entanto fala de harmonização, que é um efeito próximo da equalização e do voice coder.

Noise reduction

No fundo o noise reduction (redução de ruído) é uma variante sofisticada da filtragem que consiste na possibilidade de não só extrair elementos intrínsecos do som (frequências) mas também, numa sequência sonora contendo diversos objectos sonoros, extrair objectos sonoros inteiros, deixando intacto o resto. Exemplo: subtrair o ruído do ar condicionado num diálogo gravado. O aperfeiçoamento destas técnicas teve um enorme salto qualitativo na era do som digitalizado e da chamada «inteligência artificial».

As ondas sonoras têm a capacidade de se somarem e subtraírem, e esta capacidade pode ser usada para anular alguns sons presentes numa massa sonora: se sobrepusermos a um som a sua cópia invertida (negativa, digamos assim), obtemos silêncio, porque as duas cópias de sinal contrário se anulam entre si.

A invenção das técnicas digitais de som veio introduzir algumas habilidades até então inexistentes no tratamento electroacústico do som, facilitando a redução de ruído. Em anos mais recentes, as tecnologias do tipo «inteligência artificial» vieram dar ainda mais eficácia ao processo, sendo por vezes possível silenciar ou reduzir certos ruídos que faziam parte duma sequência sonora.

Sociologia e cultura quotidiana

Na vida quotidiana, as estratégias de filtragem revelam-nos o alcance das condicionantes sociais. As chaminés, as condutas de ar condicionado, as varandas fechadas em marquise e muitos outros elementos da arquitectura contemporânea, como elementos de filtragem que são, constituem excelentes elementos de descrição cultural e arqueológica da nossa época.

Estas filtragens, casuais ou propositadas, integram a nossa cultura e constituem elementos de referência obrigatória. Quando imitamos a voz roufenha de Louis Armstrong, a lengalenga das hospedeiras de bordo ou o tom nasalado do Pato Donald, estamos a efectuar um trabalho de filtragem através do aparelho vocal e fazemo-lo porque sabemos não haver equívoco possível quanto às intenções – são referências culturais cristalizadas.

Embora todo o ser humano possua o mesmo tipo de aparelho vocal, cada língua possui um modo de filtragem característico. A língua francesa privilegia os fonemas com frequências entre os 800 e os 1800 Hz; o inglês prefere os 2000 aos 12 000 Hz; o português, além das suas frequências dominantes (não faço ideia quais sejam), mantém uma espécie de bordão sibilante à roda dos 5000-7000 Hz. Daí que, mesmo não entendendo uma palavra do que um grupo de turistas esteja a dizer no meio da algazarra e do trânsito, sejamos muitas vezes capazes de intuir a origem da língua.

A filtragem é um recurso constante e intuitivo na comunicação oral de todos os seres humanos; e as instituições de poder utilizam-na deliberadamente desde a Antiguidade. O recurso a um simples tubo acústico escondido na base dum pedestal permitia aos oráculos arrepiarem a espinha do mais descrente dos cidadãos, dando a ideia de vozes vindas de outro mundo (simplesmente porque no nosso mundo não era comum aquele tipo de filtragem, isto é, aquele referente era estranho ao quotidiano).

Estética musical

Durante a fase de mistura e masterização duma gravação, a filtragem é geralmente essencial. Primeiro, é preciso escolher uma estratégia para cada um dos sons a misturar: o som deve ser semelhante ao som directo?, deve soar natural?, ou deve ser alterado em função de considerações subjectivas? A esta intenção soma-se uma questão técnica e perceptiva: se quisermos que todos os sons presentes sejam distintos e perceptíveis, temos de abrir em cada um deles (por meio de equalização) espaço suficiente para os outros caberem, sem que os sons se empastelem mutuamente. Ou, inversamente, podemos querer que eles se misturem, de forma que a sua totalidade crie uma nova identidade sonora, qualitativamente distinta das suas componentes.

Tecnicamente os filtros dividem-se em terços de oitava, passa-alto, passa-baixo, passa-banda, corta-banda. (Remeto o leitor para a literatura da especialidade, visto que a respectiva explicação não é essencial à compreensão dos paradigmas sonoros.)

O voice coder é um caso extremo de aplicação de filtros de análise em paralelo e em série, que separam e isolam as características da voz e das cordas vocais, permitindo depois, p. ex., aplicar essas características num violoncelo para o pôr a «falar» (ver p. ex.: Laurie Anderson, O Superman, 1982).

No limite, é possível emprestar a qualquer instrumento musical o timbre de outro instrumento, ou mesmo sintetizar um som a partir de geradores e filtros electroacústicos. Um sintetizador é, afinal, um gerador de frequências filtradas (existem técnicas de síntese aditivas e subtractivas).

É preciso não esquecer que todos os microfones e todos os aparelhos de reprodução exercem uma acção de filtragem mais ou menos pronunciada. Daí que o suporte físico final duma produção de som seja factor determinante na estratégia de produção e mistura: não se faz da mesma forma uma masterização para CD ou para TV, porque os respectivos meios de reprodução final são bastante diferentes.

É preciso também conhecer os factores que melhor permitem ao ouvido humano caracterizar e identificar um som. Se tocarmos no piano um lá grave (fundamental = 55 Hz) e lhe retirarmos radicalmente os agudos (corta-alto = 440 Hz), o ouvido deixa de reconhecer a proveniência do som e acha-o totalmente insólito; para o manter reconhecível, é preciso fazer um corte acima dos 1000Hz. Se fizermos o inverso (deixamos os agudos intactos e cortamos os graves abaixo dos 220Hz), a origem instrumental continua a ser bastante clara. Faça-se agora a experiência com um som muito agudo (do7, fundamental = 2092 Hz), cortando completamente os agudos acima desta frequência; desde que a fundamental continue intacta, o ouvido não tem qualquer dificuldade em reconhecer a origem do som; já o mesmo não se passa se cortarmos os graves abaixo da fundamental, o som torna-se inidentificável.

Expressões mediáticas

De épocas anteriores à invenção do registo sonoro e da electroacústica chegam-nos imensos testemunhos sobre práticas e efeitos de som. O romantismo manifesta preferência por sons filtrados (através das paredes das casas, dos lagos e jardins românticos, etc.), eliminando as frequências mais agressivas (agudos) e preferindo os sons mais suaves, mais densos, favorecendo a atitude do herói solitário – é a estética de um certo tipo de individualismo.

A maneira sonora de estar no mundo é muito fortemente transcrita em inúmeros romances anteriores à invenção do registo sonoro. A la recherche du temps perdu, de Proust, p. ex., consagra uma atenção privilegiada ao ambiente sonoro caseiro e familiar: a descrição dos sons transmitidos e filtrados através dos tabiques das casas cria uma ambiência de contacto permanente com o mundo exterior, mas ao mesmo tempo geram no herói um estado avassalador de inquietude. Embora se trate de um romance escrito, o som é o personagem principal.

Arquitectura e urbanismo

A arquitectura de pátio interior do século XIX, ainda existente em cidades como Lisboa, Porto ou Paris, oferece-nos uma referência típica. As paredes das casas antigas menos pobres eram geralmente bastante grossas; o facto de as portas de serviço de cada casa darem para o interior do pátio, que por sua vez possuía um conjunto de edifícios e muros que separava o ambiente doméstico do mundo exterior, criava uma espécie de escudo acústico entre a rua e a intimidade. Obtinha-se assim um efeito de atenuação de intensidade, bem como a filtragem de certas frequências mais agudas e agressivas. Nessa época os centros urbanos eram bastante ruidosos, ao contrário do que o público contemporâneo pode imaginar – as rodas de carruagens e outros veículos, as bigornas dos artesãos, os pregões de rua, os músicos amadores (havia muitos, em casa e na rua), etc., constituíam um somatório monumental de ruídos. De meados do século XX em diante, o trânsito de rua passou a ter um espectro de frequências e timbres muito diferente – o ambiente sonoro urbano alterou-se radicalmente.

Num edifício moderno cuja construção atenda aos estudos de sociologia e urbanística sonoras, o primeiro elemento de filtragem serão as varandas e cornijas pronunciadas, que podem servir de obstáculo à potência do tráfego ou actuar como filtro.

As diferentes estratégias de construção, do ponto de vista acústico, não dependem apenas do estado dos conhecimentos de técnica acústica em cada época, que mesmo antes de ter base científica já era muito eficaz, mas sobretudo da atitude cultural dessa época. Entre os séculos XVIII e XX deram-se alterações sucessivas e radicais na vida social e doméstica que justificam a evolução de determinadas estratégias de construção. O que se alterou sobretudo ao longo dos tempos foi a forma de encarar as relações hierárquicas entre as pessoas e aquilo a que poderemos chamar «relações de dependência acústica». Assim, temos épocas em que os senhores das casas burguesas aceitam ou querem mesmo ouvir as vozes dos criados na sala ao lado; temos épocas inversas, em que se pretende isolamento absoluto. O mesmo aconteceu com as relações de dependência acústica entre a sala dos adultos e a sala das crianças. Estas variantes culturais tornam quase indecifrável, na actualidade, a intenção de certos textos – como os de Balzac, quando ele descreve com minúcia a disposição relativa das salas dum palacete e o manejo das respectivas portas, antes de dois personagens encetarem uma conversa privada; é que de toda essa descrição o leitor da época extraía intuitivamente a disposição e propósito dos personagens, de forma a evitar-se a descrição simplória, e a narração transformava-se assim num autêntico sucedâneo do cinema sonoro.

Acústica e física

No percurso entre a fonte emissora e o receptor, as frequências que compõem o som são alteradas. Reflectem-se em todos os objectos e obstáculos interpostos (o chão, as paredes, as árvores, a mobília) e cada um desses objectos absorve determinadas frequências e acrescenta a sua própria «cor» ao som; atravessam a atmosfera (ou a água ou o cimento), que já de si é bastante variável e filtrante; percorrem distâncias variáveis, consoante as circunstâncias e a posição do ouvinte, e durante esse percurso perdem mais ou menos energia. As frequências altas (os sons agudos) desgastam-se mais depressa e correm menos, não vão tão longe nem tão depressa como as frequências graves.

Os aparelhos de medição acústica permitem identificar as frequências amplificadas e absorvidas por uma sala. A partir daí é possível corrigir o som da sala, ou mesmo imitar o som de outra sala. Nas salas de espectáculo os pormenores aparentemente mais insignificantes (por exemplo, o facto de as cortinas de veludo das portas estarem abertas ou fechadas) podem ter um efeito acentuado na qualidade do som recebido em diferentes pontos da sala.

 


Notas:
[1] Sobre alguns aspectos técnicos da reverberação e da absorção, ver por exemplo as páginas de Lenard Audio.
Rui Viana Pereira, 2000 ► última revisão: 18-11-2024
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