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repertório dos paradigmas de som

Corte

Alteração súbita de intensidade, reverberação, ritmo ou timbre, criando uma mudança de ambiente ou cena.

categorias: composição

O corte é um modo de articulação entre espaços distintos: denuncia a passagem de um ambiente para outro. Pode resultar de uma alteração na fonte emissora (p. ex. silenciamento súbito) ou nas condições de propagação (p. ex. mudança de um espaço reverberante para uma câmara abafada). É fundamental na organização do espaço e do tempo, nas artes e na comunicação.

Acústica e física

A análise acústica, e portanto quantitativa, do corte é parcialmente possível e pode até constituir um exercício muito interessante, embora bastante problemático: o corte joga com uma enorme variedade de alterações de intensidade, timbre, reverberação, ritmo, etc., e todas essas variações podem associar-se entre si de mil maneiras – os vectores em jogo, do ponto de vista do sonoplasta, pertencem mais ao âmbito da percepção do espaço e do tempo, do que da acústica.

Arquitectura e urbanismo

A arquitectura moderna introduziu grandes alterações nas relações espaciais, criando novas relações entre espaço e som. O desaparecimento progressivo das ruas estreitas reduziu o número de elementos materiais de corte, tornando o ruído ambiente mais uniforme, mais contínuo, menos sujeito a cortes.

Na arquitectura de interiores passou-se algo semelhante, sobretudo nos escritórios: os gabinetes foram frequentemente substituídos por vastos espaços (os chamados open spaces) que eliminam os elementos físicos de corte (as paredes e portas). Há aí um aumento da massa sonora conjunta e uma quebra da privacidade acústica.

Por outro lado, a introdução de transparências na arquitectura criou relações desconcertantes: nas estruturas em vidro, à continuidade visual não corresponde uma continuidade acústica, de modo que se cria uma ruptura na coesão normal entre visão e audição. Onde o nosso sistema perceptivo e cognitivo estaria à espera de uma unidade coerente, deparam-se-nos dois sistema espaciais distintos, opostos mas sobrepostos: um baseado no corte, outro na continuidade.[1]

Desta intervenção paradoxal da arquitectura contemporânea na organização do espaço, do som e da acção, Jacques Tati tira partido magistral em filmes como Play Time ou Traffic. Passar uma porta de vidro para entrar noutro espaço qualitativamente diferente que podemos antever mas não podemos anteouvir é quase sempre surpreendente (ainda que o hábito acabe por amortecer a surpresa…). O ganho ou perda estética daí resultante depende da forma como o arquitecto pesou (ou não) o jogo entre espaço, tempo e acção – a arquitectura e o urbanismo têm uma estética e uma ética que mexem constantemente com o som; e o som, como não me canso de repetir ao longo destas páginas, é espaço; ou, melhor dizendo: onde há espaço, há som, e não existe som sem espaço.

A percepção dos limites entre diferentes espaços sonoros citadinos contíguos permite-nos qualificar os tipos de espaço público. Assim sucede na passagem de bairros habitacionais para bairros comerciais ou industriais; de bairros de habitação económica para bairros de habitação de luxo; de zonas reservadas aos peões para zonas de grande tráfego; de lugares de lazer (tapadas, p. ex.) para lugares de demonstração de pompa e poder. Mesmo sem imagem, o ouvido bem treinado consegue distinguir esses lugares.

Os grandes centros comerciais, onde é criado um espaço sonoro uniforme, podem tornar-se enfadonhos para algumas pessoas, por falta de cortes sonoros bem marcados – não é possível identificar pontos de referência sonora, conglomera-se tudo num magma sonoro uniforme, como convém a uma lógica uniformemente consumista.

Do ponto de vista urbanístico, a sensação acústica de corte pressupõe que nos movimentemos através do espaço urbano. Este movimento pode ser do próprio ouvinte (ao atravessar as ruas, ao fechar uma porta, …) ou dos objectos exteriores (carro que passa, pregão do vendedor ambulante, …). Durante um passeio pela cidade, o ouvido atento nota uma sequência que é, só por si, um trabalho de composição semelhante ao de uma sinfonia.

Expressões mediáticas

1. É comum na rádio e na televisão haver longas fiadas de anúncios, com risco de a atenção do ouvinte se perder ao longo de uma sequência monótona de spots publicitários. No entanto, esta sequência pode resultar numa atenção renovada, desde que não passe pela cabeça do sonoplasta «equalizá-la», organizá-la de maneira uniforme, suavizando a transição entre cada jingle; a brusquidão (corte) é aqui fundamental. Geralmente todos os anúncios são apresentados ao mesmo nível de intensidade, mas cada um tem um estilo, um colorido, um ritmo distinto do anterior, de modo que este recurso sistemático ao efeito de corte consegue manter pelo menos uma parte da atenção do ouvinte e evitar a sensação de ladainha.

2. Na linguagem poética, compete à dicção e à arte da declamação organizar a leitura em cortes.

3. Na retórica clássica o domínio do corte na articulação vocal era um meio fundamental de captar a atenção do ouvinte, tendo dado origem a longos tratados e sistematizações que se perderam no curso dos séculos, mas que tendem a ser empiricamente retomados, sob outras formas, nas artes performativas. A arte retórica não tratava apenas de criar efeitos de surpresa e manter curta a rédea da atenção; as pausas serviam também para abrir espaço ao trabalho da imaginação dos interlocutores, à construção e assimilação de sentido – coisas incompatíveis com a moderna ideia de «tempo de antena», que obriga a uma cavalgada sem mudanças de ritmo ou outros elementos dinâmicos.

4. No teatro, a mudança de cena corresponde a um corte no espaço e no tempo. O cinema e a sonoplastia herdam este paradigma.

Na construção de uma sequência – por exemplo, uma banda sonora –, o corte tem as mesmas características que encontramos na vida quotidiana, com a diferença de que ocorre por meios artificiais. Na realidade, o paradigma do corta-e-cola é uma das chaves instrumentais na arte contemporânea, com especial destaque para o cinema e a sonoplastia, que assentam neste paradigma (sendo claro que há excepções). Quando estas duas formas de expressão não fazem uso do corte, isso significa que toda a acção se passa no mesmo espaço/cenário, ou no mesmo ambiente/estado de espírito.

Sem a aplicação de cortes e elipses, toda a acção narrativa se passaria em tempo real: a narrativa de acção de um personagem que sai do emprego para casa poderia durar duas horas … é a aplicação de cortes e elipses que permite reduzir a narrativa a poucos segundos, dando um salto no espaço e no tempo.

5. Nos telejornais portugueses, a tendência de muitos editores para «cruzarem» e fundirem notícias diferentes, recusando o intervalo, o corte, a mudança de andamento ou a pausa, demonstram um mau estilo generalizado na TV: o máximo de faits divers para um mínimo de reflexão.

Estética musical

Na música, o corte de intensidade, passando do pianíssimo ao fortíssimo ou vice-versa, serve de pontuação e estimula a atenção; pode também marcar uma mudança de ambiente emocional. Os cortes de timbre ou de tom têm o mesmo efeito: introduzem mudanças de clima, de estado de espírito, provocam novas associações de ideias, forçam uma atenção renovada.

A música concreta começou por ser fundada neste tipo de efeito, uma vez que a tecnologia disponível impunha que a base material de trabalho fosse o corta-e-cola (cut & paste) da fita magnética.

Psicologia e fisiologia da percepção

A percepção é particularmente sensível às alterações súbitas de «cor acústica» (reverberação e timbre), responsáveis pela noção de contraste. A introdução súbita de um silêncio em contraste com os acontecimentos sonoros que o precedem tem geralmente efeitos pronunciados no ouvinte. No plano fisiológico, o ouvido (ou a percepção auditiva) precisa de um certo tempo para se adaptar à passagem duma situação de grande intensidade sonora para o silêncio (tal como a visão precisa de tempo para se adaptar a mudanças intensas de luminosidade). Exemplo: quando por falha técnica a música pára subitamente numa discoteca, as pessoas que estavam a conversar apanham um choque ao ouvir a projecção da sua própria voz; segue-se um ligeiro período de adaptação e só então as vozes baixam de intensidade.

O efeito de surpresa provocado por cortes súbitos é um dos instrumentos mais poderosos da sonoplastia e da música para forçar a atenção do ouvinte a centrar-se nas mudanças de espaço, de tempo, de ambiente emotivo.

Outro exemplo típico de corte é o exercício de teatro em que, no meio da algazarra generalizada, uma única voz consegue captar a atenção dos restantes actores, forçando-os a calarem-se – pode fazê-lo por meio de uma alteração de intensidade ou de timbre.

O efeito de corte é um instrumento privilegiado para contrariar o adormecimento sensorial.

Sociologia e cultura quotidiana

O efeito de corte está estreitamente ligado ao conceito de «assinatura sonora», que nos permite perceber a origem ou proveniência de determinado som. Apesar de muitas cidades apresentarem aspectos espaciais (largos, avenidas, etc.) e funcionais (eléctricos, trânsito, fontanários, bandos de aves residentes, etc.) semelhantes, o ouvido treinado consegue muitas vezes reconhecer o carácter do lugar mesmo sem ver a imagem. O mesmo se pode dizer em relação à compartimentação social: um ouvido apurado é capaz de distinguir a estratificação social de um ambiente (conversas, sons produzidos pela actividade humana, sons extravazantes dos espaços privados e públicos, etc.).

O conceito de assinatura sonora, por sua vez, tem a haver com a delimitação territorial e urbana. Quando passamos subitamente duma baixa citadina para um bairro residencial, o corte e a respectiva afirmação de carácter sonoro são impressionantes.

Na actividade individual a sucessão e interrupção de tarefas cria uma sequência de cortes tão clara e contundente como a leitura de um livro dividido por capítulos, ou como uma sinfonia repartida em andamentos. Assim, por exemplo, num ambiente rural calmo, se duas pessoas que estão a conversar se dirigem para um carro e o põem em andamento, cria-se uma sucessão de cortes dramáticos. Para quem esteja de fora da cena, gera-se automaticamente uma sucessão de «antes» e «depois», uma espécie de découpage cinematográfica por cenas e planos: som de vozes calmas, bordão contínuo e socializante que indica a presença de outros seres humanos; estalo das portas, arranque brutal do motor; movimento do carro, os pneus estalam na gravilha, o zumbido do motor afasta-se, diminui; silêncio, ausência... Para as duas pessoas que entram no carro, o efeito de corte faz-se igualmente sentir de forma brutal: cada um se dirige para um lado do carro, um deles entra antes do outro, as vozes sobem ligeiramente de intensidade para vencerem a distância e a barreira de chapas do veículo; o motor arranca, as vozes calam-se, atentas ao motor e a outros preparativos de segurança, pouco inclinadas a lutar assim de repente pela supremacia com o rugido do motor; o carro começa a rodar, as vozes retomam a conversa, mas agora num tom, intensidade, timbre e ritmo diferentes, vencendo definitivamente o rugido do motor.

Numa sala de aulas onde reina a algazarra geral: o grito do professor, ou uma palmada brutal sobre a mesa, introduz um corte de som (e portanto de sentido) que capta as atenções e cria um novo sentido à cena.

O corte sonoro é um instrumento fundamental da comunicação humana.

Rui Viana Pereira, 2000 ► última revisão: 04-08-2024
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