Bordão
Presença de um fluxo sonoro constante, de intensidade estável, ao longo de uma sequência áudio.
Bordão era inicialmente um som grave, contínuo, sobre o qual assentava a restante orquestração; é também o nome da corda mais grave de certos instrumentos. Com o desenvolvimento da música, o bordão deixou de ser necessariamente um som grave.
É uma presença permanente nas paisagens industriais e urbanas, nas regiões à beira-mar e à beira-rio, e até nos lares, onde o conjunto dos circuitos eléctricos e dos electrodomésticos, caldeiras de aquecimento, lareiras, ar condicionado, produz um bordão constante.
Sociologia e cultura quotidiana
No dia-a-dia qualquer som contínuo pode constituir um bordão: por exemplo, um fontanário, uma auto-estrada. O efeito de drône das auto-estradas varia de país para país, consoante o tipo de motor e cilindradas dominantes – o zumbido das auto-estradas americanas é bastante diferente do das europeias, e essa diferença, inserida na banda sonora dum filme, pode facilmente poupar muitas imagens destinadas a situar a acção.
Todos os circuitos eléctricos produzem um ruído constante – na Europa 50 Hz, nos EUA 60 Hz, uma frequência no limiar da audição humana; mas nos cabos de alta tensão e nos postes telefónicos, onde a tensão de corrente é diferente, não temos dificuldade em perceber o zumbido constante. Certas línguas (corso, sardo, siciliano) têm a capacidade de manter um bordão constante.
Toda a banda sonora de Guerra das Estrelas assenta neste fenómeno: sendo um filme sobrelotado de máquinas e robôs, era necessário «humanizá-lo»; o som dessas máquinas foi construído sobre drônes da nossa vida quotidiana: circuitos eléctricos, televisores (±15 300 Hz), etc. Esses sons, paradoxalmente, humanizam a voz dos robôs, porque nos são familiares.
Os cafés e restaurantes de hoje em dia têm sempre uma combinação de zumbidos provenientes das arcas frigoríficas e do ar condicionado. Geralmente não os notamos por elisão (isto é, o ouvido recebe-os, mas a nossa consciência elimina-os), mas também porque se criou o hábito obsessivo de sobrepor máscaras a esses bordões: telefonia, televisão, música ambiente. Sucede, porém, que o efeito de máscara é aplicado pelos gerentes sem verdadeira consciência do que estão a fazer – usam-no para atrair os clientes (jogos na TV, etc.), produzindo quase sempre uma pressão acústica ambiente muito maior do que se apenas se ouvisse o zumbido das máquinas. O resultado deste hábito cultural é que certos lugares públicos produzem factores de stress muito elevados (embora o público não tenha consciência disso).
Em Portugal o estudo para efeitos legais e normativos da produção de ruído ambiente está por fazer; duma maneira geral só se fala das grandes fontes de ruído industrial e das discotecas. Do ponto de vista legal e da consciência colectiva, a fonte da maior parte de ruído ambiente (pequeno comércio, instalações sonoras das autarquias e das empresas de transporte, etc.) não existe – o que, aliás, vem mais uma vez demonstrar que a audição é um fenómeno essencialmente cultural e não físico. Assim, acontece que nas zonas comerciais as lojas procuram demarcar território em concorrência umas com as outras, apontando altifalantes para a rua; a esta cacofonia juntam-se por vezes as autoridades locais, quando instalam altifalantes nas ruas (no Natal, Carnaval, festividades locais, etc.). Comparando este fenómeno com os estudos e medidas adoptados em França nas últimas cinco décadas, conclui-se a ausência de critérios de ética e estética sonora urbana em Portugal.
Por outro lado sabe-se hoje que, a partir de um certo limiar, a pressão sonora constante retarda a actividade cerebral – por exemplo, os clientes duma loja com música em altos berros estão sujeitos a uma redução drástica de critério. Um condutor de automóvel com uma superaparelhagem no volume máximo diminui gravemente as suas capacidades mentais – trata-se de um fenómeno bem conhecido e regulamentado noutros países, pela simples razão de constituir um perigo para a segurança pública.
Em certas zonas industriais a população estabeleceu uma relação inconsciente entre o arranque dos motores das fábricas (ventiladores, geradores, etc.) e a chamada ao trabalho (algo semelhante ao cantar do galo ou à sirene existente em algumas fábricas antigas para chamar os trabalhadores trabalho). O estudo pluridisciplinar destas situações detectou uma conotação de melancolia em relação aos bordões industriais. Mas não se pense que esse efeito de melancolia resulta das características do próprio som – os estudos de campo revelaram que é a subjugação e a monotonia do trabalho que confere melancolia ao som, e não as suas qualidades acústicas.
Algumas religiões ou correntes de meditação utilizam o baixo contínuo como indutor de transe. Qualquer pessoa que já tenha assistido a orações islâmicas, judaicas, mantras, etc., reconhece facilmente o efeito hipnótico ou transeúnico das orações. Certas práticas de meditação orientais utilizam técnicas destinadas a induzir na caixa craniana uma espécie de onda estacionária de baixa frequência, produzindo estados de consciência alternativos (a frequência de ressonância da caixa craniana é da ordem dos 20-50 Hz, ou seja, não pode ser ouvida mas pode ser sentida). Certos tambores graves africanos produzem efeito semelhante.
Psicologia e fisiologia da percepção
Muitos dos bordões quotidianos passam-nos despercebidos, ou porque assentam em frequências nos limites da audição, tornando-se subliminares, ou porque sofrem o efeito da focagem e elisão. No entanto, quando se pede a alguém que entoe uma nota, é quase certo que essa pessoa irá afinar por um múltiplo ou harmónico desse som, sinal de que os sentidos o registaram, embora a consciência não tenha feito o mesmo.1
Em muitas culturas existe uma associação de ideias entre as frequências baixas e o perigo, a melancolia ou a tristeza. Como os sons graves se propagam mais longe, são muitas vezes utilizados como sinais de perigo (sirenes de nevoeiro, buzinas, etc.) e por conseguinte adquirem uma conotação que tende a provocar alguma angústia nas populações. Os sons telúricos são sempre perturbadores, como se fossem um sinal de alarme impresso no nosso ADN.
Inversamente, outros sons constantes nos edifícios (as caldeiras de aquecimento nos países frios, p. ex.) podem estar associados a um sentimento de bem-estar e segurança. E assim, acontece que ao substituir-se as caldeiras antigas por outras mais modernas e silenciosas, os habitantes do prédio protestem contra o novo ruído, que qualificam de insuportável – sentem a falta de um ícone sonoro de bem-estar a que estavam habituados.
Os bordões ou zumbidos constantes são um dos fenómenos que melhor nos ajuda a compreender que as paisagens sonoras não são apenas campestres, urbanas ou industriais, mas também domésticas – o zumbido conjunto das lâmpadas, do frigorífico, do ar condicionado ou da lareira, não só está sempre presente, como pode até atingir intensidades bastante elevadas.
Estética musical
As cordas ou tubos mais graves de alguns instrumentos musicais são chamadas bordões. É essa a função que lhes cabe muitas vezes na música: produzir um fluxo contínuo de fundo, sobre o qual os instrumentos com tons mais agudos navegam.
Recentemente, a música ocidental começou a utilizar o que certas culturas antigas utilizavam há muito tempo: bordões encavalitados em frequências diferentes para produzir um estado de transe. A sobreposição de comprimentos de onda ligeiramente diferentes, que se vão cruzando, confluindo e desviando num lentíssimo movimento, como uma serpente em movimento, pode produzir um efeito hipnótico, um fluxo constante onde, de quando em quando, irrompem combinações inesperadas. Exemplos desta técnica são Musics For Airport, de Brian Eno, e a intervenção de rua efectuada pelos Urban Sax nalgumas cidades.
Exemplo:
Bordões encavalitados: 4 notas iguais mas ligeiramente desafinadas entre si (diferença de 0,1 a 0,9 Hz), cada uma delas constituída por uma frequência fundamental e 4 harmónicos.
Não foi aplicado nenhum efeito sobre estes sons – os ritmos gerados resultam simplesmente dos desencontros de quatro frequências (notas).
Nota: este ficheiro tem de ser lido em formato wav, porque a versão mp3 destroi o efeito pretendido. Além disso é duvidoso que os altifalantes de computador portátil ou pequenos auscultadores permitam ouvi-lo.
Arquitectura e urbanismo
A partir da década de 1970 passou a ser comum em certos países o trabalho de parceria entre arquitectos, músicos e engenheiros de som. Vêm dessa época os jardins sonoros (de que a Expo2000 em Lisboa teve direito a uma réplica). Os jardins sonoros tiram partido dos elementos naturais e acidentais: amplificação do vento (harpas eólicas), amplificação dos pingos de chuva, passadeiras-xilofone activadas pela passagem dos visitantes, etc. Os fontanários também podem ser usados como fontes de som modulado, como órgãos de água.
O tráfego contínuo das grandes vias urbanas e auto-estradas gera um bordão fortíssimo e queixas permanentes das populações que habitam nas proximidades, de forma que nas últimas décadas se têm procurado soluções várias: barreiras de som nas bermas, barreiras arbóreas, janelas com vidros duplos, etc.
Nos espaços interiores e privados a tecnologia moderna não pára de acrescentar fontes de ruído contínuo: frigorífico, ar condicionado, lâmpadas zumbidoras, televisores catódicos que geram zumbido, ventoinhas de refrigeração dos computadores; todos estes ruídos vêm acrescentar-se a outros preexistentes de origem «natural», especialmente nas habitações de má construção, tão comuns nas cidades portuguesas: por exemplo, o sopro contínuo de vento nas frestas das portas, janelas e chaminés. Alguns destes ruídos são conotados com o desconforto da habitação de baixa qualidade, outros com o conforto do lar – caso do ruído contínuo das lareiras, salamandras e caldeiras de aquecimento.
Nos locais de trabalho a soma de todos estes bordões (ventiladores, lâmpadas, arcas frigoríficas, computadores, campainhas de telefone...) chega a atingir níveis de pressão acústica preocupantes (sem legislação ou inspecção em Portugal); no entanto as pessoas que lá trabalham habituam-se a elidir da consciência auditiva esses drônes e só tomam consciência do seu espantoso volume quando uma falha de corrente eléctrica impõe o silêncio geral – essas ocasiões excepcionais provocam sempre uma espécie de perplexidade encantatória, de leveza etérea; as conversas mudam de tom, as vozes procuram nova colocação, fala-se e comunica-se com menor esforço; são momentos sempre surpreendentes.
A questão dos espaços interiores agrava-se (pelo menos em Portugal) pelo facto de a maioria dos arquitectos ou construtores não prestarem atenção ao efeito acústico de certos elementos estruturais (colunas, caixas de ar, antecâmaras), das condutas de ar, dos nichos para instalação de electrodomésticos, etc. E quando excepcionalmente os arquitectos levam a peito a adequação sonora das instalações e tomam providências específicas, não raro são os utentes que, por desacerto cultural, irão destruir o trabalho do arquitecto, multiplicando as fontes de ruído fora dos locais previstos.
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