Paradigmas de som
Este repertório visa:
- expor as principais características recorrentes dos sons quotidianos e da sonoplastia;
- mostrar que os sons em si mesmos não têm significado – somos nós que lhes atribuímos sentido;
- anotar as relações sociais que estão na base da atribuição de significado aos sons;
- contribuir para a criação de uma linguagem de contacto que não só permita a cada criador articular as suas próprias ideias de som, mas também forneça um instrumento de comunicação no seio de equipas pluridisciplinares.
Note-se que o termo paradigma não é aqui usado em sentido científico, nem no sentido que lhe atribuem os filósofos anglófonos do século XXI – estas páginas têm intenções modestas e usam o termo paradigma num sentido próximo da sua origem etimológica:
- os paradigmas sonoros são modelos de pensamento e acção que ajudam a compreender o mundo audível a partir de todas as relações sociais e culturais envolvidas (abordagem pluridisciplinar);
- oferecem um instrumento para comunicar ideias e projectos de som (linguagem de contacto);
- oferecem um guia de acção para construir objectos sonoros inteligíveis e actuantes no mundo em que vivemos (ética do som).
O meu repertório de paradigmas sonoros inspira-se directamente na investigação publicada por Jean-François Augoyard, com destaque para o livro À l'écoute de l'environement, répertoire des effets sonores [À Escuta do Meio Ambiente, Repertório de Efeitos Sonoros], publicado em 1995 por Éditions Parenthèses.
No entanto, onde Augoyard fala de repertório de efeitos, eu falo de repertório de paradigmas. Esta distinção, já abordada nos textos introdutórios, é importante e implica algumas divergências metodológicas em relação à linha de trabalho proposta por Augoyard.
Apesar de seguir de perto as ideias de Augoyard, muita coisa teve de ser adaptada ao ambiente social e cultural português. Há, além disso, alguns pormenores em que divirjo de Augoyard. Para não romper a coerência metodológica nem correr o risco de ver serem atribuídas a Augoyard ideias que ele não defende, assinalo sempre que oportuno os casos de divergência. Um deles tem a ver com a terminologia adoptada em português. Augoyard exibe um acentuado gosto pelo uso de termos provenientes da retórica clássica e fá-lo com grande coerência e rigor. A liberdade que tomei na tradução do seu repertório de efeitos justifica-se na intenção de fornecer um instrumento linguístico/cognitivo ao alcance de todos, independentemente da formação de cada um – o vocabulário de Augoyard iria, a meu ver, dificultar a vida ao leitor menos erudito em retórica, filosofia e literatura clássicas. Ao procurar palavras mais familiares e fáceis de memorizar em português, sempre que possível optei por termos comuns às disciplinas de som, cinema, teatro e outras artes que fazem uso da sonoplastia.
Categorização dos paradigmas
A categorização dos paradigmas de som em grandes grupos não é de forma alguma indispensável aos objectivos do presente repertório, mas pode ajudar o leitor a orientar-se no meio das 44 fichas de paradigmas.
Note-se que, na minha metodologia, as categorias não funcionam como um mapa dicotómico e não são mutuamente exclusivas: um paradigma pode integrar várias categorias ao mesmo tempo.
Comecemos por usar um critério que sopesa os aspectos qualitativos e quantitativos, que se articulam frequentemente de forma dialéctica.
paradigmas elementares
Dizem respeito à natureza física dos sons e têm parâmetros quantificáveis, entre os quais:
- tom (=frequência, comprimento de onda)
- potência (=volume do som, pressão acústica)
- timbre (=«cor» do som, nomeadamente dos instrumentos musicais).
Os elementos constituintes dos sons são gráfica e matematicamente representáveis e estudados pela Acústica. Mas o estudo científico do som inclui outros elementos que afectam a sua propagação e a forma como chegam aos nossos ouvidos: nomeadamente, os que são impostos ao som original pelos meios de propagação e pelo espaço circundante; exemplos: filtragem, ressonância, reverberação, …
Do ponto de vista material, todos os sons consistem na agitação cíclica das partículas que constituem a matéria. Do ponto de vista perceptivo, contudo, existe um limiar abaixo do qual essa pulsação é entendida como um som contínuo (duas vibrações ouvidas com um intervalo de 10 milissegundos são entendidas pelos seres humanos como um só som); e um limiar acima do qual toda a pulsação é entendida como tal e designada comummente por eco, sílabas, cadência, etc., consoante o contexto físico e cultural; entre os dois limiares situa-se uma zona de indecisão perceptiva. Assim, em muitas línguas, dois fonemas tornam-se distintos quando cada um deles dura pelo menos 50 milisegundos; mas este valor distintivo varia consoante o tipo de som e sua relação com o aparelho fonatório – o que mostra desde logo que mesmo os aspectos mais elementares, quantitativos, do som têm uma relação dialéctica com os aspectos perceptivos e culturais (qualitativos).
Além disso, o ouvido humano apenas é capaz de perceber uma diminuta parte de todo o espectro sonoro: mesmo os melhores ouvidos apenas percebem as frequências situadas entre os 20 Hz e os 20.000 Hz. O resto do espectro sonoro não é aqui considerado, porque apenas nos interessam os sons que são percebidos pelos seres humanos.
paradigmas de composição
Resultam da conjugação de efeitos elementares, sempre que essa conjugação produza um ganho qualitativo. As suas componentes elementares são mensuráveis, mas não o complexo resultante, que comporta uma transformação de natureza qualitativa. A sua definição assenta na relação espacio-temporal entre os elementos, o contexto e o ouvinte.
Para definir um efeito de composição não bastam as características inerentes à natureza física do próprio som, é preciso entrar em linha de conta com a percepção do ouvinte e as circunstâncias culturais e sociais que lhe estão associadas. Exemplos: máscara, corte, bordão, …
paradigmas semânticos
A sua definição assenta na distinção entre significado e contexto. Envolvem descontextualização e valor estético acrescentado. Exemplo: imitação.
paradigmas mnemoperceptivos
Apelam à organização perceptiva e à memória do ouvinte. Têm grande força efectiva, mas em muitos casos subjectiva, isto é, por apelarem à memória individual, não se pode garantir que o mesmo som provoque o mesmo efeito em diferentes pessoas. Exemplo: reminiscência.
Outro critério possível para a classificação dos paradigmas de som releva os meios de produção e a quantidade de energia aplicada:
paradigmas electroacústicos e digitais
De maneira geral, os paradigmas de som mantêm a sua natureza, quer tenham origem natural ou artificial, e portanto, à primeira vista, não haveria necessidade de distinguir os meios de produção. Contudo, alguns deles não existem «ao natural», nasceram com a invenção dos aparelhos electroacústicos. Exemplos: wah-wah, compressão.
A introdução dos meios de produção e reprodução digitais trouxe novas possibilidades ao mundo da sonoplastia, nomeadamente o noise reduction (redução de ruído).
paradigmas dinâmicos
Têm a ver com as variações da quantidade de energia, quer estejamos perante um som isolado (ex.: uma nota solta de piano) ou uma sequência (ex.: uma banda sonora, uma paisagem sonora, uma sinfonia).
Paradigmas dinâmicos num som breve e isolado: ADSR, compressão, etc.
Paradigmas dinâmicos das sequências sonoras: crescendo/diminuendo, acelerando/retardando, corte, etc.
Organização das fichas de paradigmas
Para cada paradigma foi criada uma ficha contendo:
-
a sua designação genérica (e, sendo caso disso, as suas variantes)
-
uma definição teorética, sintética e lacónica
-
uma explicação extensiva sobre as suas principais características
-
subfichas para cada uma das abordagens multidisciplinares:
-
acústica e física
-
arquitectura e urbanismo
-
estética musical
-
expressões mediáticas
-
psicologia e fisiologia da percepção
-
sociologia e cultura quotidiana
-
Um trabalho em curso
À data em que reinicio a escrita destas linhas (segunda metade de 2021), as fichas aqui publicadas encontram-se ainda em desenvolvimento. As razões que levaram à publicação precipitada de um trabalho em curso não interessam ao leitor, mas é preciso que ele seja alertado para o facto de alguns textos poderem vir a sofrer alterações, ditadas quer pela reflexão progressiva, quer pelo desenvolvimento da investigação de campo nas várias disciplinas envolvidas. Daí que, no pé de cada página, o leitor encontre a data original de criação do tema e a data da última revisão.
As fichas que aparecem entre parêntesis curvos no índice geral aguardam desenvolvimento.
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