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repertório dos paradigmas de som

Qualquer gravação é ficção

A difícil aprendizagem de distinguir entre ficção e realidade, que geralmente se faz através dos jogos de infância e da literacia, pode em certos casos tornar-se mais difícil: graças a um nível de literacia mais elevado, é hoje mais raro que alguém confunda a personagem de uma telenovela com o actor que a encarna; mas é frequente o consumidor confundir uma gravação audiovisual que lhe seja apresentada na Internet, com a realidade. Em parte, esta confusão entre a ficção e a realidade é programada e tem a ver com algo semelhante ao que alguns autores chamam «contrato» com o espectador: uma sequência sonora pode ser apresentada com o selo da «ficção», da «reportagem», do «instantâneo», do «documentário», da «música», etc. Esses selos denotam o contrato com o consumidor.

Mesmo quando um entrevistado fala para o microfone sob o selo documental, está frequentemente a fazer um esforço de imaginação para se tornar actor, isto é, para cumprir uma imagem de si próprio; esta imagem inclui a palavra, o gesto, o discurso, a postura, etc. O entrevistado é inerentemente um criador, e portanto qualquer entrevista é em parte uma ficção. Creio que qualquer antropólogo tem consciência deste fenómeno ao fazer os seus inquéritos de campo; não sei dizer se qualquer jornalista possui essa consciência.

Por sua vez, o ouvinte, quando recebe uma entrevista áudio, tem de fazer um esforço para reconstituir a gestualidade, o espaço físico onde a cena se desenrola (sugerido pela reverberação contida na gravação), etc. Todos os dados em falta tendem a ser preenchidos pela imaginação do ouvinte, e portanto em certa medida o ouvinte está a ouvir-se a si próprio – isto é, está a imaginar dentro dos limites da sua memória pessoal.

Isto sucede porque o áudio funciona apenas no eixo temporal, carecendo de um esforço de reconstrução por parte do ouvinte; cabe a este repor as dimensões em falta. Se esse esforço não puder ser feito, a sequência sonora corre o risco de se tornar totalmente abstracta ou até um fetiche.

Ao despojamento, no todo ou em parte, das quatro dimensões da realidade  íntegra, chamo nestas páginas abstracção.

Um entrevistado ouvido via rádio só deixa de ser uma abstracção quando a nossa imaginação lhe empresta todas as dimensões em falta. Isto não quer dizer que as suas palavras não façam sentido na ausência de um imaginário. Fazem tanto sentido como se eu disser: «temos aqui um conjunto de três coisas e se houver quatro conjuntos destes, teremos doze coisas ao todo». Se não imaginarmos três coisas concretas, a frase ainda assim faz sentido, ou seja, é uma abstracção que se refere a tudo em geral e a coisa nenhuma em particular; a frase é justa, mas espoliou a realidade de todas as suas dimensões intrínsecas. Contudo, a nossa imaginação (pelo menos no caso das pessoas que fazem uso dela) tenderá a ver três coisas quaisquer – 3 maçãs, 3 cavalos, 3 graças –, e só então o virtual se torna actual, ainda que tão-só na nossa imaginação.

Rui Viana Pereira, 2000 ► última revisão: 19-09-2023
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