Princípios fundamentais da análise do som
Ao longo desta introdução aflorámos várias abordagens que evitam a redução do som às perspectivas clássicas (acústica e musical) e estabelecem os limites do nosso campo de trabalho. Vamos revê-los e sumariá-los sob a forma de princípios de trabalho.
1º princípio: Sem espaço denso não existe som
Quando falamos de som, estamos necessariamente a falar de espaço denso ou substantivo. O espaço denso opõe-se ao vácuo: é preenchido por alguma espécie de matéria (sólida, líquida ou gasosa). Fisicamente, o som consiste numa agitação ondulatória das partículas constituintes da matéria; daí que não possa existir som no vácuo.
Dada a dimensão infinitesimal daquelas partículas, raramente podemos vê-las em acção, mas em certos casos o fenómeno torna-se visível – as ondas do mar, a vibração das cordas nos instrumentos musicais, etc.
O exemplo das ondas do mar é particularmente útil como metáfora visual do som, porque, embora elas pareçam correr, uma observação atenta1 permite concluir que as partículas da água oscilam na vertical, transmitindo o seu movimento às partículas que estão ao lado, e assim sucessivamente, de modo que a sua correria não passa de uma ilusão óptica. Ora as ondas sonoras comportam-se da mesma maneira e nisso se distinguem das ondas hertzianas, que podem ser multidimensionais e existir no vácuo.
Entre a fonte sonora e o receptor existe necessariamente um meio de transmissão substancial. Deste facto resulta que todo o som chega até nós tingido pela substância intermediária (ver filtragem e coloração). Assim, um som colhido na sua origem (por exemplo, através de um microfone de contacto) será sempre bastante diferente do som que chega até nós através do ar, da água ou de um tabique de madeira.
Colorário 1: Não existem espaços vivos sem som (entenda-se por espaço vivo aquele onde existe espaço denso e energia).
Corolário 2: Tendo em conta a definição de abstracção aqui adoptada (=despojamento total ou parcial das quatro dimensões da realidade), toda a sequência sonora audível é concreta, uma vez que, além de se desenrolar na dimensão tempo, não pode existir fora de um espaço físico quadridimensional e substantivo.
Estabeleçamos desde já uma relação de equivalência identitária: onde há espaço substantivo, há som; onde há som, há espaço substantivo. Posto isto, não é de admirar que alguns dos avanços mais inovadores no estudo contemporâneo do som provenham de pessoas e lugares ligados à arquitectura: a arquitectura trabalha o espaço; ora, por assim dizer, espaço é som.
2º princípio: Todo o fenómeno sonoro envolve a fonte emissora, o meio transmissor, o receptor e o espaço cultural/social
Este princípio é fundamental no estudo interdisciplinar do som. Sem ele, os nossos meios de análise ficariam reduzidos à acústica e à música, deixando fora de portas os aspectos ambientais, sociais, culturais e psicoacústicos.
A primeira componente – a fonte emissora de som – é evidente. Quer se trate do som de um martelo pneumático, de uma ave ou de uma gravação, sem fonte emissora não existiria fenómeno sonoro. É a fonte sonora que determina os primeiros aspectos elementares do som.
A segunda componente – o meio transmissor, ou medium – é muito menos evidente, até porque na maioria dos casos é o ar, essa coisa invisível. No entanto, o 1º princípio diz-nos que sem espaço substantivo não pode existir som e portanto alguma coisa temos de encontrar entre a fonte e o receptor – quase sempre o ar, mas também a água, ou uma parede de betão, ou qualquer outra substância.
O meio transmissor tem uma importância decisiva não só na transmissão das ondas sonoras, mas também na sua transformação: subtrai ao som original algumas das suas características e adiciona-lhe outras.
A terceira componente – o receptor – é, aparentemente, passiva: limita-se a colher os sons emitidos. Contudo, é ela que atribui significado aos sons emitidos (ver adiante).
A quarta componente – o espaço cultural/social – actua como um pressuposto, ou uma fonte primária da produção de sentido, que compete ao receptor.
3º princípio: A atribuição de significado aos sons é da responsabilidade do receptor
Como já vimos, os fenómenos sonoros caracterizam-se pela presença do triângulo emissor-medium-receptor. Poderíamos tender a crer que os sons ficam terminantemente definidos pela dupla emissor-medium, mas de facto não sucede assim: a presença do receptor é essencial para construir o significado dos sons.
A transmissão dos sons provoca no receptor um efeito qualquer, ligado à percepção e à cognição. É nesse momento que o receptor apõe ao som um significado – seja este produzido pelo próprio ou pelo meio social donde provém.
Os sons em si mesmos não contêm qualquer espécie de significado – os fenómenos ondulatórios não possuem uma molécula capaz de transportar significados. Ainda que os seres vivos, ao emitirem sons, possam estar imbuídos de uma intenção, essa intenção não pode ser impressa materialmente nas ondas sonoras. O canto de uma ave pode resultar de uma intenção do animal, tal como o sonoplasta, ao produzir uma banda sonora, terá certamente um conjunto de intenções; mas a palavra final cabe sempre ao receptor: é ele, e apenas ele, que, imbuído da sua cultura pessoal e colectiva, imprime um significado final ao som, de tal forma que, se emissor e receptor tiverem referências culturais diferentes, a intenção inicial do emissor pode não conseguir sustentar-se: o significado atribuído pelo receptor pode não coincidir com a intenção do emissor.
Por vezes o significado atribuído aos sons encontra-se mascarado por um emaranhado de relações sociais, de tal forma que só à custa de habilidosos inquéritos de campo é possível desvendá-lo. Tal é o caso da vibração contínua das caldeiras de aquecimento dos edifícios no Centro e Norte da Europa: para um habitante do Sul pode ser um ruído enervante, mas os inquéritos demonstram que para um habitante do Norte esse ruído é um ícone de bem-estar e conforto. O mesmo se passa com o rugido contínuo do mar ou de um rio tumultuoso, que para um estrangeiro pode tornar-se incómodo ao cabo de algumas horas, mas para um autóctone pode simbolizar a fonte de toda a vida – o lugar donde provém todo o sustento – e por isso denotar conforto e bem-estar.
A construção do sentido dos sons tem tanto de individual como de colectivo. É assim que os inquéritos de campo revelaram que o som das sirenes das fábricas não é melancólico por natureza, como se pensava. A melancolia atribuída provém na realidade da sua associação à monotonia repetitiva do trabalho [Augoyard, 1995], à exploração e à alienação inerentes ao trabalho assalariado – ou seja, o carácter melancólico não está impresso no som da sirene, mas sim nas relações sociais concomitantes.
Corolário 1: a análise multidisciplinar do som não é particularmente sensível à estética, mas é muito sensível à ética – isto é, às acções, comportamentos, usos e relações sociais associados a cada som ou sequência sonora, bem como à transformação dos ambientes sonoros. Isto significa que não falaremos aqui do Belo e do Feio, porque isso implicaria a anulação dos três princípios enunciados.
Corolário 2: quando falamos de significado dos sons ou das sequências sonoras, às quatro dimensões envolvidas na transmissão dos sons concretos temos de acrescentar uma quinta dimensão: a dimensão social, sem a qual não existiria produção de significado.
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