Escuta reduzida, consciência variável, verdade indeterminada
Em Audiovisão, Michel Chion distingue três tipos de escuta: a escuta causal, a escuta semântica e a escuta reduzida. Embora o âmbito/objecto do ensaio de Chion seja diferente do nosso, é útil rever as suas propostas.
Como explico com maior detalhe mais adiante, ao falarmos de som devemos distinguir quatro factores intrínsecos aos fenómenos sonoros: 1) a fonte do som; 2) o som em si mesmo; 3) o espaço onde ele se propaga; 4) o receptor/ouvinte. A análise do primeiro factor coloca-nos muito próximo do que Chion chama «escuta causal» – revela-nos a origem material do som e as eventuais motivações a ele associadas.
O segundo tipo de escuta mencionado por Chion – a escuta semântica – é particularmente importante no objecto de estudo de Audiovisão, que é o cinema sonoro, onde grande parte das obras tem um carácter diegético e assenta pesadamente em códigos narrativos (embora não tenha de fazê-lo obrigatoriamente), incluindo diversos tipos de códigos sonoros.
«Chamamos escuta semântica àquela que se refere a um código ou a uma linguagem para interpretar uma mensagem (...)» [Michel Chion, Audiovisão, p. 29]
A escuta semântica, no sentido em que Chion usa o termo, à partida não seria relevante para o âmbito do nosso trabalho. Sucede, porém, que este ensaio ronda insistentemente a formação de sentido dos sons escutados – ou seja, coloca de alguma forma a questão semântica, uma vez que indaga a relação entre os objectos sonoros e as ideias que eles denotam, ou suscitam. Os sons que nos rodeiam têm uma individualidade própria – não são necessariamente nem signos nem fetiches –, mas o facto é que despertam a imaginação do ouvinte e por essa via denotam ou associam-se a objectos, ideias, convenções sociais e idiossincrasias – desse ponto de vista, pode dizer-se que formam sentido, ou que obrigam o ouvinte a formar sentido a partir deles. O processo de formação de sentido é desvendado ao longo deste ensaio – onde para cada paradigma de som é apresentada numa ficha explicativa – e, como veremos, tende a assentar pesadamente nas relações sociais. Esta relação de dependência entre a formação de sentido dos sons e as relações sociais bastaria para justificar a vantagem da abordagem multidisciplinar ao som.
Por fim, temos a escuta reduzida. Sabemos que Chion toma esse termo emprestado de Pierre Schaeffer, que por sua vez, com toda a probabilidade, o inventa a partir do conceito de redução eidética de Husserl. Isto levanta um conjunto enorme de complicações, que muito gostaríamos de ignorar, porque nos obriga a dar a volta ao mundo (da história das ideias), quando o que nós queríamos era ficar aqui, muito sossegadinhos, a estudar a tipologia dos sons. Mas infelizmente não podemos olhar para o lado e fingir que não vimos esses dois marcos históricos do estudo contemporâneo dos sons: a análise dos objectos sonoros em si mesmos (no caso de Schaeffer) ou na sua relação com a imagem (no caso de Chion). Tenhamos portanto a paciência de aflorar a questão e verificar de que modo ela afecta a nossa metodologia.
O problema começa logo na expressão «redução eidética», devido à teima ocidental em pôr rédea nas palavras, para as obrigar a seguir por veredas idealistas, fugindo assim à etimologia indoeuropeia e clássica, que é sempre muito terra-a-terra. Existe uma tensão evidente entre a etimologia da palavra e a sua evolução filosófica no mundo ocidental: boa parte dos dicionários dir-vos-á, de forma sintética, que a eidética diz respeito à essência das coisas; contudo, eidos, em grego, significa «eu vi», e portanto remete para a forma e não para a essência. Por outro lado, o exemplo mais simples de redução eidética (a que nos iremos agarrar com unhas e dentes, para evitar a tal estafa da volta ao mundo em 80 mil páginas) consiste no seguinte: se olharmos para dezenas de formas triangulares, conseguiremos abstrair-nos da forma particular de cada uma delas e do respectivo contexto, para por fim intuirmos que um triângulo, genericamente, é uma forma geométrica fechada, com três lados, assente num plano a duas dimensões. A escuta reduzida a que Schaeffer e Chion se referem tem tudo a ver com este exemplo: se, por exemplo, ouvirmos durante um tempo suficiente a voz de um locutor, conseguiremos abstrair-nos do valor semântico do que ele diz, das circunstâncias em que o diz, e acabaremos por conseguir definir a «essência» da sua voz (o timbre, os ritmos de respiração, etc.); embora a «forma» da voz seja muito variável, com inumeráveis recursos expressivos, ao ponto de uma pessoa jamais conseguir repetir a mesma frase duas vezes exactamente da mesma forma (ao contrário de um computador), o ouvinte consegue extrair a sua essência – ou seja, identificá-la entre todas as demais, seja lá qual for o conteúdo do seu discurso.
A escuta reduzida dos objectos sonoros isolados não é a mais interessante para a abordagem que aqui proponho – eu pretendo precisamente fugir da análise dos objectos sonoros isolados, ou seja, da abordagem exclusivamente acústica e musical. O âmbito que eu proponho é multidisciplinar e o tipo de objectos sonoros que indago é sobretudo o das sequências sonoras, não tanto o dos sons isolados. Contudo, é verdade que a «redução eidética» oferece um método de trabalho útil para chegarmos ao que eu designo «paradigmas de som», isto é, modelos que, abstraindo dos casos particulares, permitem classificar e nomear os vários tipos de sequências sonoras.
No que diz respeito à escuta semântica, é preciso ainda acrescentar o seguinte: eu não pretendo que cada som seja portador de uma verdade qualquer, isto é, que tenha um significado ou valor único para toda a gente – pelo contrário, parto do princípio de que um mesmo som possa ter significados diferentes em diferentes circunstâncias, em diferentes culturas e em diferentes indivíduos. Exemplo típico é a sineta: para uns o seu som pode estar associado/denotar a missa; para outros, as ovelhas; para outros, o mordomo e a sala de jantar; para outros, o lazer, a praia e o vendedor de bolas-de-berlim; etc. É certo que o objecto em si (o som e o objecto que o causa, a sineta) pode ser tipificado, pelo menos nas suas propriedades físicas e acústicas; mas o significado a ele associado – ou as imagens que ele suscita no ouvinte, ou a consciência do seu som, como prefiram dizer – em muitos casos não pode ser tipificado; seria, portanto, indeterminado ou caótico. Neste sentido, podemos dizer que, neste ensaio, um dos problemas clássicos da filosofia, da lógica e da ciência – a determinação da verdade, ainda que provisória – me é absolutamente indiferente. Digamos que em relação à verdade, a abordagem deste ensaio é agnóstica. Isto, por sua vez, como iremos ver mais adiante, arreda destas páginas as considerações de ordem estética ou moral.
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