Introdução
Comecemos por delimitar o âmbito destas páginas por meio de um exercício de síntese subtractiva: a acústica física e a música, dois domínios onde habitualmente se alicerça o estudo das artes sonoras, não constituem o cerne do nosso interesse nem fornecem o acervo de conhecimentos e métodos adequados à nossa indagação. Podemos apertar ainda mais o nosso âmbito, dizendo que não visamos o estudo dos sons isolados. Numa terra de ninguém, algures entre o estudo e o ensaio, o presente trabalho observa o vasto universo sonoro que nos rodeia, com especial destaque para as sequências sonoras.
Tradicionalmente, o estudo dos objectos sonoros envolve a ciência acústica, a música e, em parte, o uso da voz. Contudo, esse tipo de abordagem, ainda que permita definir os fenómenos sonoros em si mesmos, é impotente para os colocar em relação com o contexto social e cultural – estuda-os como se eles pudessem existir isoladamente, sem ligações ao processo cultural, social e individual de construção de significado. O nosso objectivo vai mais além: buscamos pistas que nos permitam compreender a formação de significado das sequências sonoras e discutir as suas formas de construção. Tal abordagem será feita por meios multidisciplinares, recorrendo, além das bases de conhecimento já mencionadas, à arquitectura e urbanismo, ao estudo das expressões mediáticas, à psicologia e fisiologia da percepção, à sociologia, à cultura quotidiana, etc.
O número de influências teóricas que inspiram a abordagem aqui proposta é diversificado, mas devo dar particular destaque ao Répertoire des Effets Sonores [Repertório dos Efeitos Sonoros], publicado em 1995, de Jean-François Augoyard & Henry Torgue, donde parte o processo de reflexão aqui proposto.
Do ponto de vista da construção de sequências sonoras, poder-se-ia argumentar que este esforço de análise é inútil: sem dúvida, o construtor de uma banda sonora ou do som de uma tampa de pasta dentrífica ao fechar-se não precisa da teoria aqui desenvolvida para realizar o seu trabalho; basta-lhe saber manusear os seus instrumentos de produção sonora. O argumento é justo, mas restritivo: na mesma linha, poder-se-ia dizer que um músico não é obrigado a estudar solfejo e composição para exercer a sua arte, basta-lhe saber manusear um instrumento musical; o que, embora sendo verdadeiro, deixaria de fora vários séculos de cultura e produção artística dita erudita.
O segundo objectivo deste estudo consiste na construção de uma linguagem de contacto que facilite o trabalho colectivo, muito frequente em inúmeras actividades contemporâneas que envolvem o som (cinema, teatro, publicidade, marketing sonoro, etc.) e que vão mais além da autoria individual. A ausência de uma linguagem de contacto dedicada ao som tolhe muitas vezes a comunicação de ideias numa equipa multidisciplinar e gera frequentes mal-entendidos. Quando digo «linguagem de contacto», refiro-me a uma linguagem sistematizada, simples, utilizável por especialistas e não especialistas, que facilite a transmissão genérica de ideias de som. Isto é comparável ao que se passa em muitas outras áreas, nomeadamente nas imagens em movimento: uma equipa de figurinistas, electricistas, operadores de câmara, actores, etc., só consegue conceber e produzir colectivamente um filme, graças ao domínio de uma linguagem cinematográfica unificada que lhes permite falar de enquadramentos, iluminação, plano narrativo, etc. É este cimento comunicacional que falta ao som. Sem ele, o sonoplasta vê-se alienado do trabalho colectivo – embora faça parte de uma equipa, na realidade está a trabalhar sozinho.
Resumindo, perseguimos um objectivo duplo:
- divulgar a abordagem multidisciplinar do som;
- construir uma linguagem de contacto que permita exprimir ideias genéricas de som.
Ambos os objectivos assentam na noção de «paradigmas de som», que tentaremos definir. Antes, porém, temos de abordar quatro ordens de assuntos que interessam à investigação dos paradigmas de som ou a condicionam:
- alguns antecedentes no estudo contemporâneo dos objectos sonoros;
- razões que justificam a criação de uma linguagem de contacto para as actividades que envolvem produção sonora;
- noções gerais sobre alguns elementos da história dos meios de registo e reprodução de som;
- princípios teóricos e metodológicos que presidem à nossa investigação e à construção dos paradigmas de som.
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