Aspectos psicofisiológicos do som
Talvez estranhem que, propondo-me eu falar de acústica, comece por introduzir o tema da psicofisiologia. Porém, dada a abordagem aos paradigmas de som aqui proposta, outra coisa não faria sentido, como espero que se torne claro no final destas linhas.
Comecemos por comparar a audição e a visão, cujo funcionamento nos é bastante familiar.
Visão
Do ponto de vista mecânico, podemos comparar a visão ao funcionamento de uma câmara fotográfica:
- tem foco variável – dados vários objectos disposto em planos sucessivos, os olhos têm a capacidade de focar um desses planos, em prejuízo dos outros; esta operação, notemo-lo desde já, depende da vontade mas tem um mecanismo físico;
- tem abertura variável (diafragma) – depois de escolher o plano em foco, a pupila adapta-se à quantidade de luz ambiente, de modo a obter uma melhor definição do objecto focado. Este mecanismo é automático e físico, mas para entrar em acção depende da vontade, que tratou previamente de definir um alvo;
- tem pálpebras (obturador) – a qualquer instante podemos baixar as pálpebras e desligar a visão; outro mecanismo físico que depende em grande parte da vontade;
- tem um campo ou quadro – não vemos o mundo a 360º, como as moscas: existe um «quadro» (incluindo a visão periférica) para além de cujos limites não vemos nada; se queremos ver o que está fora desse quadro, temos de recorrer a outro trabalho mecânico que consiste em virar a cabeça, ou seja, reenquadrar a imagem;
- é exclusivamente sensível ao movimento – ao contrário de uma câmara, os olhos não vêem bem o que está fixo; se o objecto que queremos ver estiver imóvel, os olhos entram numa agitação micronésima que permite manter o objecto sob atenção.
Além destes aspectos físicos, existe um requintado aparelho de percepção (a parte do cérebro que selecciona a miríade de dados captados pelos olhos e lhes atribui um sentido). O aparelho perceptivo tem:
- estabilização da imagem – se um objecto estiver em movimento, ou a tremer, ou se nós próprios estivermos em movimento agitado, a percepção consegue «estabilizar» o objecto alvo da nossa atenção. Este importantíssimo trabalho da percepção – sem o qual, presumivelmente, não seria possível sobreviver em situações de perigo – é de tal forma requintado, que só muito recentemente os computadores e as câmaras de vídeo conseguiram imitá-lo;
- selecção de dados – é ela que escolhe o foco/alvo; este trabalho perceptivo já depende em si mesmo da atribuição de significados ao mundo exterior e implica a existência de uma direcção, uma intenção; é ela que escolhe o campo de visão.
Audição
Ao contrário da visão, a mecânica da audição
- não tem foco físico — os ouvidos captam em pé de igualdade todas as ondas sonoras que chegam até nós;
- não tem diafragma físico — não nos é possível regular mecanicamente a intensidade dos sons que chegam até nós;
- tem um campo de 360º — apesar de haver uma direcção privilegiada, que pode mudar com a posição da cabeça, ouvimos sempre tudo o que se passa à nossa volta, não temos campos auditivos «mortos»;
- não tem obturador físico — pura e simplesmente não podemos desligar a audição, nem sequer quando dormimos; dito de outra forma, a audição não tem pálpebras;
- não tem estabilizador — recebemos os sons em bruto, embora sejamos capazes de atribuir sentido a uma fonte sonora em movimento – efeito doppler –, mas isso é um trabalho da percepção, não da parte física da audição; de resto, como a audição funciona apenas na dimensão temporal, a questão da estabilização não se coloca.
Então, se os nossos ouvidos não têm pálpebras, se não podem desligar, se não podem focar um entre os milhares de sons que nos chegam constantemente aos ouvidos, como conseguimos sobreviver? Como se explica que não enlouqueçamos com a avalanche de dados que nos entra pelos ouvidos a cada milésimo de segundo, acordados ou a dormir? A resposta a esta pergunta está no trabalho da percepção, e não na mecânica do ouvido interno.
Esta conclusão é crucial para compreender a abordagem multidisciplinar e a nossa recusa de aceitar a acústica e a música como únicas perspectivas válidas para o entendimento do universo sonoro.
Sendo a percepção o instrumento decisivo na escuta do mundo que nos rodeia, segue-se que a questão fundamental a indagar reside na formação do sentido atribuído aos sons que chegam até nós. Ora a formação de sentido não depende apenas de factores subjectivos (caso em que duas pessoas diferentes nunca ouviriam a mesma coisa): os factores sociológicos, culturais, políticos, enfim, o conjunto das relações sociais, unem-se aos factores puramente subjectivos, para dar sentido ao que ouvimos.