Música abstracta e música concreta
Fala-se de «música concreta» e a maioria das pessoas começa logo a pensar em serras eléctricas, sirenes, concertos para bidão e jantes de automóvel. Ora, música concreta designa nestas páginas – e nas de muitos outros autores – um conceito bastante diferente.
Talvez a distinção entre música concreta e música abstracta, proposta por Pierre Schaeffer na década de 1950, pareça bastante abstrusa, mas o seu entendimento é importante para a história das artes sonoras – vou tentar conduzir, por terrenos tão desanuviados quanto possível, uma explicação abreviada.
Por razões históricas, comecemos pela música abstracta. Antes, porém, é preciso deixar bem claro que se trata de estudar o processo de produção musical e não de uma questão estética. Quando falo de música abstracta e música concreta, não estou a referir-me às qualidades e atributos do objecto musical em si mesmo, nem aos instrumentos que elas usam, mas sim ao modo como foram objectivamente construídas.
O que é música abstracta?
A chamada música clássica assenta na utilização de um conjunto de regras canónicas que estipulam um vocabulário basilar (notas, escalas, harmonias, didascálias, etc.) e orientam à partida a construção dos instrumentos musicais – um instrumento que não obedeça a estas regras é de duvidoso préstimo numa orquestra clássica.1
Depois existe uma «sintaxe» canónica que estipula a forma de articular aquele vocabulário. Donde resultam os cânones de ritmo, harmonia, contraponto, etc.
A vantagem da música abstracta é que quando o compositor tem uma ideia, pode registá-la por escrito e transmiti-la aos intérpretes: existe uma escrita musical universalmente aceite, que permite a pessoas distantes, ou mesmo ausentes noutras épocas, comunicar e trabalhar entre si.
Além disso, como as ideias do autor podem ser transmitidas de forma abstracta, por meio de código universal de escrita, ele pode compor para uma orquestra de 50 instrumentos; não tem de tocar ele próprio todos os instrumentos ao mesmo tempo, para mostrar o que quer dizer – tal como o arquitecto não tem de construir a casa para mostrar o seu projecto ao cliente.3
Resumindo, a música abstracta oferece a capacidade de desenvolver ideias musicais e transmiti-las de forma abstracta; daí que seja possível compor música mesmo depois de ser atacado de surdez.
A expressão escrita do pensamento do compositor é uma coisa muda, que necessita de um intérprete para ser reificada e adquirir vida plena. Este intérprete pode ser o autor ou qualquer outra pessoa; entre o pensamento do autor e o público ouvinte, a música abstracta necessita de um mediador. Uma partitura é música morta, por assim dizer, e a mediação viva é o contraponto da abstracção musical; compete ao mediador transformar a obra abstracta num objecto sonoro concreto, audível.
O que é a música concreta?
Essa invenção extraordinária que é a música abstracta acarreta, no entanto, uma factura: os sons utilizados pelo compositor e a estruturação desses sons têm de obedecer a certas regras; essas regras constrangem, reduzem a utilização da riqueza virtual que a natureza, a sociedade e a imaginação põem à nossa disposição. A música torna-se assim uma espécie de visão matemática do mundo, e como tal (entre outras perspectivas possíveis) foi estudada desde a Grécia Antiga.[2]
Na primeira década do século XX, o movimento futurista rompeu este espartilho, denunciando o facto de a música clássica já não ter a capacidade de exprimir a realidade urbana envolvente e propondo a utilização do universo sonoro urbano para discorrer sobre a contemporaneidade. Mas isso só algumas décadas depois seria passível de ser feito em larga escala, graças à invenção e comercialização da panóplia electroacústica. O gravador permite-nos recolectar pedaços da realidade sonora, recortá-la, transformá-la e remontá-la para criar uma nova realidade.
Temos portanto o nascimento de uma nova arte do som capaz de utilizar todas as variantes sonoras da realidade envolvente, capaz até de criar sons alheios à natureza.
Mas, também neste caso, há na música concreta uma factura a pagar: não é possível manter o papel do mediador-intérprete. Jamais será possível repetir a mesma gravação, com os mesmos pássaros, à mesma hora e no mesmo lugar. Jamais será possível reproduzir a forma como o autor manipulou os circuitos de um sintetizador, num determinado dia: a maior parte das vezes o próprio autor não consegue produzir duas vezes seguidas o mesmo som no sintetizador – ou o regista logo ali ou o perde para sempre. Por outras palavras, há um factor de experimentação e vivência pessoal intransmissível, não mediatizável, que define a produção da música concreta. Este factor influi, obviamente, na natureza da música assim produzida, mas esse é outro assunto de que não trataremos aqui.
Na música concreta, o acto de criação e experimentação faz parte da própria obra, com exclusão do mediador-intérprete. Ouso afirmar que só existe acto criativo pleno na música concreta quando existe acto experimental. E quando os dois coincidem, a obra está feita, acabada, com exclusão do intérprete-recriador.
Então como é que a obra chega ao ouvinte? Graças aos meios de reprodução, isto é, aos próprios meios técnicos que permitiram ao autor trabalhar – e aí o ciclo fecha-se: o mediador/intérprete da música concreta é a panóplia técnica; é um mediador fundado na inteligência técnica e científica, mas inanimado; exclui o trinómio clássico autor-intérprete-público, reduzindo-o a duas entidades: o autor e o ouvinte. O ouvinte, por sua vez, só pode reinterpretar a obra se aceitar o dado fundamental em que ela assenta: a experimentação.
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