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repertório dos paradigmas de som

Sharawadji

Definição: Criação de uma forte sensação de plenitude estética onde, paradoxalmente, nenhum sentido de conjunto é discernível.

Como vimos nos textos introdutórios, a produção de sentido é um momento essencial nos efeitos sonoros. O sharawadji, definido como uma aparente ausência de sentido, consistiria então num puro efeito estético, subjectivo, capaz de produzir prazer ou encantamento no ouvinte, mas impossível de definir objectivamente. Este facto veda-lhe a entrada na lista de paradigmas de som.

Augoyard esclarece que o termo foi importado no século XVII por viajantes europeus que visitaram a China. Segundo eles, quando os chineses visitavam um jardim que os impressionava pela ausência aparente de desenho, diziam que esse jardim tinha um sharawadji admirável.

Na perspectiva de Augoyard, o sharawadji designa um ambiente sonoro cujas componentes parecem não se submeter a qualquer ordem ou estrutura, sendo no entanto responsáveis por um ganho qualitativo de conjunto. É o que acontece, por exemplo, quando, ao deambularmos no meio da cacofonia citadina, sentimos surpresa ou um prazer inexplicável ao virar uma esquina onde se fazem ouvir as combinações mais improváveis de sons. Assim, para compreender o conceito de sharawadji, é preciso estar disposto a suspender as velhas noções da música, alicerçadas num determinismo previsível e bem regrado.

Ainda segundo Augoyard, o sharawadji é a aproximação ao ilimitado, a negação peremptória da delimitação do pensamento e da imaginação. «O ilimitado não é um número, mas antes o gesto do infinito. Isto é, um gesto pelo qual toda a forma finita se eleva na ausência de forma» (Du sublime, J.-L. Nancy, 1988).

Por ser incongruente face ao seu contexto, por ultrapassar os modelos formais, o sharawadji coloca-se fora da problemática do Belo. É um efeito semântico (sempre segundo Augoyard) que desmonta o sentido previsível das circunstâncias em que ocorre – e portanto, sendo acidental e imprevisível, torna-se impenetrável aos cânones da beleza.

Uma melodia construída com dados pode pertencer ao domínio do acaso, mas não constitui sharawadji. A sonoridade citadina, pelo contrário, sendo constituída por uma pluralidade de causas e efeitos em concorrência mútua, produz combinações aleatórias, das quais emergem ocasionalmente efeitos inesperados ou sublimes.

O efeito de sharawadji é subjectivo: o que me surpreende a mim pode ser comum para ti. Mas, por outro lado, depende estreitamente do contexto: o vento, por exemplo, é sempre uma sensação auditiva e táctil ao mesmo tempo. Se, por um motivo qualquer, o contexto táctil é extraído à sensação auditiva, obtemos uma sensação de estranheza, um sobressalto encantatório, como acontece nos vales de certas cadeias montanhosas em que se ouve distintamente o vento ali ao lado, mas nada se sente.

A nossa disponibilidade para o insólito é despertada quando viajamos, isto é, quando nos encontramos fora do contexto quotidiano. Então, os mesmos sons que (não) ouvíamos diariamente na nossa cidade, aos quais nunca prestámos atenção, destacam-se claramente aos nossos ouvidos. Sob o efeito de sharawadji, o espírito fica sujeito a dois movimentos contrários: atracção e repulsão, como é característico do insólito.

A música contemporânea tem soluções de cadência, de indeterminação, de nuvens de probabilidade, encadeamentos súbitos de som e silêncio alheios à música clássica e que remetem para o efeito de sharawadji (Russolo, Cage, Penderecki...). As novas capacidades técnicas combinadas com o estudo da percepção auditiva permitiram a certos compositores nas últimas décadas provocar o baralhamento completo do ouvinte face aos conceitos de audição adquiridos (obras de Jean-Claude Risset e outros). Esta exploração do campo psicoacústico subverte as noções de alto e de baixo, desenvolvimento e retorno, etc., provocando perplexidade no ouvinte.

Ver p. ex. Songes, de Risset, 1979; ou Phoné, de John Chowning, 1981; ou L'île re-sonante, de Eliane Radigue, 2005.
 

A abertura exagerada de espaços na arquitectura contemporânea favorece a mistura caótica e uniforme dos sons citadinos. Geralmente o resultado é uma massa sonora indistinta desinteressante e onde dificilmente se destaca uma surpresa. Mas por vezes este bruá gigantesco chega ao ponto de nos fazer perder toda a perspectiva, transformando a paisagem sonora urbana numa espécie de escadas de Escher.

Porque não incluo o efeito de sharawadji nos paradigmas sonoros

É impossível definir objectivamente um guia de práticas sonoras a partir do efeito de sharawadji: o estabelecimento de um modelo exclui, por definição, a noção de sharawadji.

No entanto, admito sem dificuldade que se trate de um efeito, isto é, que provoca um efeito no ouvinte. Contudo, esse efeito é puramente subjectivo – pois o inesperado que encanta uma pessoa pode repugnar a outra – e circunstancial, pois com a repetição é bem provável que o ouvinte comece a atribuir-lhe alguma espécie de sentido. Aliás, é o que acontece muitas vezes ao ouvinte que se depara pela primeira vez com certas obras de música contemporânea: ainda que sinta um encanto inexplicável, não consegue vislumbrar qualquer lógica interna na obra, que assume assim um aspecto caótico. No entanto, com o correr do tempo e a aprendizagem, é natural que o mesmo ouvinte comece a atribuir-lhe sentido e lógica.

Em suma, o sharawadji parece-me um conceito interessante na ordem subjectiva dos efeitos, mas confuso e inútil na ordem dos paradigmas de som.

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