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repertório dos paradigmas de som

A era do corta e cola

«Temos de romper o círculo estreito dos sons musicais puros e conquistar a variedade infinita dos ruídos...» – 1913, Luigi Russolo (1885-1947), in L'Arte dei rumori. Este manifesto futurista sobre A Arte dos Ruídos viria a revelar-se uma proclamação precursora: apelava à integração da contemporaneidade (máquinas, ambientes urbanos e industriais, etc.) na linguagem artística e, à semelhança dos manifestos da mesma época sobre literatura, teatro, pintura, cinema, acusava a incapacidade das linguagens tradicionais para exprimirem a realidade quotidiana dos nossos tempos.

Di Sconosciuto - copiado do livro «The Art of Noise by Luigi Russolo» [domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=55907278]

Di Sconosciuto, o laboratório de Luigi Russolo - foto copiada do livro «The Art of Noise by Luigi Russolo» [domínio público, Wikipedia]

Para que não restassem dúvidas, Russolo construiu o intonarumori, uma máquina capaz de reproduzir ruídos de vários tipos; o primeiro concerto foi apresentado em Paris em 1921. Stravinski, Varése, Ravel, entre outros, ficaram profundamente impressionados, ao ponto de tentarem integrar o intonarumori nalgumas das suas obras. Desta máquina restam algumas fotografias, mas a II Guerra Mundial encarregou-se de destruir o único exemplar existente. Ballet mécanique (George Antheil, 1926) é um dos expoentes desta fase.

De Luigi Russolo - «Revista Lacerba» 1913 [domínio público], https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=30660511

O Despertar de Uma Cidade, de Luigi Russolo - in Revista Lacerba, 1913 [domínio público, Wikipedia]

Este processo mecânico de reproduzir ruídos e com eles criar sequências sonoras era uma extensão, no domínio do som, do princípio cubista do recorte, colagem e montagem (talvez o princípio mais marcante das artes do século XX). Foi também um prenúncio à distância de meio século da invenção da «samplagem»1.

Assim surgiu o germe da sonoplastia contemporânea, por altura da segunda década do século XX, antecipando dois conceitos centrais: o ruído (humano e ambiente) como fonte estética; o corte e colagem como princípio central da acção estética.

A importância seminal destes princípios é evidente para quem alguma vez trabalhou com fitas magnéticas (ou películas de filme): é preciso ouvir uma gravação, escolher um ponto de vista (respondendo à pergunta: no meio desta multidão de sons, o que é que me interessa ouvir?), recortar fisicamente a fita para deitar fora o que não interessa, ouvir outra gravação, repetir a operação de selecção e corte, e depois colar fisicamente as duas fitas; e eventualmente sobrepor vários destes recortes, criando uma montagem polifónica. Este continua a ser o princípio subjacente ao trabalho de montagem por meio de aparelhos digitais, embora ele não seja tão evidente fisicamente.

Nascimento da música electrónica e da música concreta

As primeiras composições de música concreta e de música electrónica foram realizadas em estúdios de rádio, porque só aí existia o equipamento técnico adequado. Os centros pioneiros foram a Radiodiffusion Française (Paris) e a Radiodifusão de Colónia. Apesar das polémicas e rivalidades iniciais entre as correntes de Colónia e Paris, os dois conceitos acabaram por confluir.

Na rádio de Paris destacam-se duas figuras tutelares: Pierre Schaeffer e Pierre Henry, co-autores de várias obras divulgadas via rádio. Em 1949-1950 Pierre Schaeffer compôs a Symphonie pour un Homme Seul, uma das primeiras obras de música concreta a serem apresentadas ao público. A sinfonia foi montada em fita magnética, com sons colectados de discos.

Em Colónia, Karlheinz Stockhausen seguia outra via: em vez de transformar sons previamente gravados, serviu-se de aparelhos capazes de sintetizarem electronicamente ondas acústicas complexas e produzirem sequências sonoras. Era seu objectivo a construção de sons «puros», sem ter de depender dos sons «reais». A primeira tentativa de Stockhausen foi Studie I (1953). A experiência fracassou, por falta de meios técnicos que permitissem apurar o timbre dos sons sintetizados, mas outras se seguiram com sucesso.

Entretanto, do outro lado do Atlântico, Raymond Scott, com muito mais humor, menos especulações filosóficas e bastante fortuna pessoal, entretinha-se a construir dezenas de sintetizadores de toda a espécie, com os quais compôs algumas das peças sonoras mais divertidas do século XX.

Exemplo:
Raymond Scott, «The Rhythm Modulator», c. 1955-1957. Gravações feitas em casa de Scott, onde ele acumulava dezenas de sintetizadores construídos por ele próprio.
 

O tempo e o debate acabariam por demonstrar que a teoria dos sons «puros» (aqueles obtidos por meio de sintetizadores) não tinha razão de ser. Foi um debate crucial para toda a arte audiovisual da segunda metade do século XX, mas demasiado extenso para ser aqui esmiuçado.

Em 1956, com Gesang der Jünling (O Canto dos Adolescentes), Stockhausen fez um compromisso entre as correntes de Paris e Colónia, conjugando na mesma obra sons concretos e sintetizados.

Depois surgiria a corrente de Milão, onde o debate sobre a nova música electrónica, acrescido à polémica Paris-Colónia, levaria à criação do Estúdio de Fonologia Musical – acrescentando novas dimensões à utilização da voz humana.

A partir daí, voz humana, sons ambientes, instrumentos musicais e sons sintetizados passaram a conviver amigavelmente na composição sonora. Qualquer rapper do século XXI, mesmo que desconheça por inteiro a história da música e da sonoplastia, ao misturar voz, samples, baixo eléctrico e caixa de ritmos está a praticar uma das expressões mais avançadas e sofisticadas da história das artes.

Reconhecimento dos factores aleatórios

Não era regra, antes do início do século XX, escrever uma partitura musical em que cada nota ou elemento não fosse precisamente determinada e nomeada. A música contemporânea, pelo contrário, transpôs para a arte o princípio da indeterminação, produzindo algumas obras em que a partitura é constituída não por átomos de música bem determinados, mas sim por nuvens de probabilidade, dentro das quais cada músico executante se pode movimentar com relativa autonomia.

Edgar Varése acabaria por resumir esta tendência numa fórmula simples: a música é «som organizado», não pela determinação espectral de cada som, mas sim pela selecção, arrumação e distribuição dos sons no tempo.

Como exemplo típico do conceito de música como «som organizado» e cruzado com o princípio da indeterminação, ouça-se PolyPoly (1970), de Arne Nordheim: seis fitas magnéticas tocam simultaneamente em loop; cada uma delas contém os seus próprios sons, mas a sobreposição das seis fontes de som dá origem a novas construções sonoras; como cada fita tem comprimento diferente das restantes, o efeito conjugado dos loops só se repetiria ao fim de 102 anos de execução contínua. A versão disponível on line (à data de 23/08/2022) tem apenas a duração de cerca de 20 minutos.2

 

Rui Viana Pereira, 2000 ► última revisão: 13-07-2023
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