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repertório dos paradigmas de som

Sobre o mito da alta fidelidade

No seu Ensaio sobre a Fotografia, Vilém Flusser define a dado passo o conceito de «idolatria»: tratar-se-ia segundo ele, grosso modo, da capacidade de ler conjuntos de símbolos (nos domínios da escrita, pintura, música, etc.) e de os produzir, sem no entanto entender o seu sentido.

Com os sistemas de reprodução sonora deu-se um fenómeno muito curioso de idolatria: alguns consumidores, sobretudo os provenientes das classes mais abastadas, tornaram-se obcecados pela «alta fidelidade». Muitos deles recusavam comprar certas edições de música clássica, por melhores que fossem as interpretações, porque as gravações, diziam, não eram suficientemente «fiéis». De entre todos os campeões da alta fidelidade que conheci, recordo um, proveniente de uma família de comerciantes lisboetas abastados, que conseguiu exaurir todos os negócios e levar a família à falência, para satisfazer essa amante insaciável que era a alta fidelidade.

Os «doentes» da alta fidelidade, figuras tão típicas das décadas de 1960-1980, eram idólatras1, vítimas daquilo que Flusser chama a «caixa negra» – ou seja, um instrumento de produção que cumpre sozinho o seu papel, sem que seja necessário entendermos o seu funcionamento, e que nos impõe determinadas regras sobre como olhar o mundo, representá-lo e agir sobre ele. A nós, os «funcionários da caixa negra» (assim lhes chama Flusser), basta-nos carregar num botão – e zás!, a máquina desata a fazer sozinha o seu trabalho, à sua maneira.

Note-se que esta situação não é terminantemente negativa, pois ainda cabem ao «funcionário» três possíveis acções decisivas: uma consiste em carregar (ou não) no botão que liga e desliga a máquina; outra, bem conhecida dos fotógrafos e cineastas, e também dos sonoplastas, consiste em escolher um «ponto de vista» ou «quadro»; a terceira consiste em «escangalhar» a máquina, para que ela produza efeitos inéditos. Como Flusser faz notar, o fabricante dar-se-á ao trabalho de incluir na próxima geração de máquinas o efeito de «escangalhamento» (interpretado à sua maneira, evidentemente, e não como opção livre e aberta).

 


Notas
[1] Um dos episódios mais caricatos a que assisti, na década de 1960, foi uma aposta sobre a «fidelidade» da gravação de uma sinfonia que termina com salvas de canhão (de Beethoven ou Tchaikovsky, não recordo ao certo, até porque ambos celebram a vitória napoleónica em Waterloo). A gravação era considerada à época um primor de técnica e portanto, se ouvida num sistema de reprodução de «alta fidelidade», teria a obrigação de reproduzir fielmente os tiros de canhão. Os dois contendores armaram-se de aparelhos de medida acústica de toda espécie e apostaram uma elevada quantia. O dono da aparelhagem ganhou a aposta, mas ainda assim sofreu um enorme prejuízo, pois teve de pagar os vidros das janelas a todos os prédios da vizinhança, estilhaçados pelo som dos tiros de canhão.
Rui Viana Pereira, 2000 ► última revisão: 10-11-2024
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